O 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra. Apesar de compor as datas comemorativas do ano, o marco está longe de ser uma celebração. Oficializada por lei, em 2011, é uma homenagem a Zumbi, o líder do Quilombo de Palmares, que morreu nesse dia, em 1695, e é símbolo da luta e resistência dos afrodescendentes que ainda sofrem com as consequências da escravidão no Brasil. Por ocasião da data, o Correio ouviu personalidades negras do Distrito Federal para responder a seguinte pergunta: o que é consciência negra para você? Em comum, a avaliação dos entrevistados de que é longo o caminho do país no combate ao racismo e que essa prática criminosa está entranhada em muitas camadas sociais. A população negra, que é a maioria no Brasil, é a mesma que possui o menor poder aquisitivo, majoritariamente baixo nível de escolaridade, vive em condições precárias nas periferias e ocupa vagas de empregos subalternos. Além disso, citaram o racismo estrutural como fator de opressão da comunidade e ofensas recebidas tão somente em razão da cor de pele e/ou tipo de cabelo.
Pertencimento
A consciência negra é fruto das experiências acumuladas por pessoas negras em contextos demarcados pelas tensões, produtos das relações raciais. Ela resulta em postura política fomentada pela lucidez diante das recorrentes violências físicas ou simbólicas provocadas pelo racismo, que afetam a subjetividade dessas pessoas. Embora a consciência seja de cada sujeito, este gesto individual torna-se de suma importância para a construção coletiva de identidades negras. A consciência negra é também consequência do modo como tais pessoas se reconhecem, quando falamos de pertencimento ao mundo africano ou à diáspora africana. A referida atitude representa um contraponto às heranças coloniais, as quais habitualmente reduzem as identidades negras aos estereótipos, amplamente midiatizados. Este fenômeno ao qual fazemos alusão requer a ruptura com padrões eurocêntricos que empurram o “outro”, neste caso o ser negro, para o lugar do exótico, do risível, do caricato. A consciência negra exige o enfrentamento dessas questões e, para tanto, requer que se vença o desserviço da alienação. Ela impõe a ressignificação do passado, de modo que seja possível, no presente, compreender as dimensões, das reparações históricas e das ações afirmativas voltadas para o segmento negro.
Nelson Inocencio, professor de artes da UnB
Torna-se negro
Vinicius Cardoso/Esp. CB/D.A Press
Gosto de pensar no conceito de Consciência Negra a partir de uma frase de Steve Biko, um dos mártires da luta de libertação do povo negro sul-africano: “...a Consciência Negra toma conhecimento de que o plano de Deus deliberadamente criou o negro, negro...”. Essa dimensão metafísica, me leva a refletir nas nossas características físicas. Somos assim: cabelos crespos, lábios grossos, narizes largos, pernas rápidas no rabo de arraia a desfilar como nossa roupa de gala, nossa pele preta. E assim somos lindos. Esse “ tornar-se negro” na essência, para mim, é uma extensão do que significa Consciência Negra. Pois há ainda o aspecto político-social. Nossos corpos são os que mais morrem, o olhar desconfiado sempre nos encontra, a bala perdida nos acha, o desemprego é certo nos momento de crise, a violência policial é rotina. E como essas duas dimensões se comunicam? Nos levando a conhecer nossa história, nossos antepassados, nossa colaboração para construção do Brasil por meio do sangue de nossos antepassados, criando ritmos, luta, danças, concebendo tecnologias para sobreviver ao racismo disfarçado de “democracia racial”. Consciência Negra é a nossa percepção histórica e a afirmação de nosso lugar como atores no passado, para construir um presente justo (ainda não queremos vingança), em direção a um futuro de emancipação, reconhecendo nossas heroínas pretas e nossos heróis pretos. Viva Dandara, viva Zumbi.
Marcelo Café, compositor e Produtor Cultural
Protagonismo
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Consciência Negra é uma reflexão da nossa história, resistência e luta. O dia, por outro lado, ainda não pode ser visto como data comemorativa. Não há um cenário confortável para comemorar sem a real intenção de fortalecer o movimento. Quando refletimos a atualidade e a história passada do Brasil, vemos algo que ninguém admite: a maioria da população é negra. Mas essa maioria não ocupa posições que são privilégios da elite branca. Por que? Talvez o incômodo em ter um preto liderando uma empresa, um departamento, ocupando posições de poder e prestígio social. O racismo velado, que todos veem mas não enxergam. Que reconhecem a existência, mas preferem não assumir. O silêncio é gritante. A indiferença é marcante nessa luta representada pelo 20 de novembro. Precisamos de políticas públicas para entender que existe uma estrutura que não dá condições para que o negro conquiste seu espaço. A fala parece repetitiva, mas necessária. Esse pensamento ecoa há anos quando o assunto é a igualdade racial, mas o progresso é lento ou praticamente nulo. A Consciência Negra de hoje serve como dia de personificar o negro como figura de desataque, um grande protagonista, mas que depois, no dia seguinte, volta ao seu antigo espaço - muitas vezes de esquecimento. Hoje a maior Consciência é reconhecer a luta em todos os dias do ano. Fora dos palcos, telas, cartazes e mídias existem pretos que lutam por sua sobrevivência. São pessoas que enfrentam uma matilha por dia para sobreviver ao sistema que a oprime por sua cor de pele.
Dai Schmidt, idealizadora do Desfile Beleza Negra
Liberdade
Vinicius Cardoso/Esp. CB/D.A Press
Consciência negra para mim é consciência histórica. Em 1971, ao propor o Dia da Consciência Negra, o Grupo Palmares, de Porto Alegre, confrontou a redução da população negra à imagem de sujeitos que não foram capazes de defender sua liberdade e precisaram da benevolência da princesa Isabel para sair da escravidão. Essa narrativa histórica é injusta e racista. Apaga um dado óbvio. Sendo gente, africanos e seus descendentes conduziram suas vidas, seja sobrevivendo a um cotidiano adverso, seja organizando levantes em prol de uma sociedade justa, reinventando a existência nos próprios termos. Além disso, essa história serviu para esconder a grande presença de pessoas negras livres no período escravista nos impedindo de perceber como o racismo tem interditado nossa cidadania e violentado nossa humanidade. Como integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, eu compartilho o compromisso com uma coletividade que sabe que o respeito àquelas e àqueles que vieram antes de nós pode ser a chave para a escrita de histórias que não tenham medo das nossas contradições e, ao mesmo tempo, demonstrem a nossa grandeza, por sobreviver aos horrores de muitas épocas.
Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e professora da UnB
Respeito
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
A consciência negra para mim é poder transitar com meu corpo negro, mulher e lésbica por todos os lugares sem correr o risco de ser mais um dado na estatística da violência no Brasil. É sobre todos termos as mesmas oportunidades, sermos respeitados e valorizados pela potência que somos. Formar cidadãos pretos empoderados que tenham orgulho de si por conhecerem a nobreza de seus ancestrais e sua história. Sendo ensinado nas escolas a importância da cultura africana para a formação sociocultural do Brasil. A consciência negra é um legado, é um movimento de união e enriquecimento do povo preto, é a nossa força para vencermos as lutas do nosso dia a dia. Por isso é tão necessário ter mais consciência de quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. E termos a certeza de que podemos ocupar todos os espaços, pois temos o poder para conquistá-los e que também somos merecedores deles. A consciência negra é um olhar de amor e uma luz de esperança sobre as sombras do racismo que ainda nos assombram, é um grito das vozes dos nossos ancestrais que ainda ecoam através de nós clamando por direitos iguais.
Kika Ribeiro, sambista
Reparação
Vivemos num país em que o mito da democracia racial foi amplamente difundido, esse mito nega a existência do racismo, afirma que as relações raciais se dão de forma harmônica. Esse mito, apesar de desmistificado, ainda faz parte da educação do brasileiro. Eu vejo que a expressão desse racismo, apesar de cinicamente ainda negado, são manifestações de algo que está desenvolvido nas entranhas sociais e políticas do nosso país. O racismo transcende o âmbito interpessoal, se estabelecendo também institucionalmente, como podemos facilmente observar ao analisar os dados do IBGE. Falar de consciência negra é falar da enorme contribuição – econômica, intelectual, cultural - da população africana e afro-brasileira para a construção do Brasil e da identidade brasileira. Consciência negra é entender os desdobramentos do racismo na vida da população Afrobrasileira e agir em direção a uma sociedade livre do racismo, é trabalhar para que a história africana e afrobrasileira seja verdadeiramente contada e bem interpretada dentro das nossas escolas e através da educação valorizar a identidade afrobrasileira. Consciência negra é entender o racismo estrutural e buscar integrar epistemologias africanas e afro-brasileiras. É entender a importância de conquistar reparação para os danos que o racismo causou e causa na nossa população.
Thaís Da Silva Teodoro, educadora antirracista e membro do coletivo Organização Negra de Alcance Nacial (Ondan)
Conscientização
Carlos Vieira/CB/D.A Press
Consciência negra para mim é uma oportunidade que é dada ao povo negro de lembrar que: o curso do rio permanece seguindo a mesma direção, que basta imaginarmos a dor para sabermos a cor, que continuamos sendo minoria nas grandes empresas, nos cargos de destaque, nos bons restaurante e eventos culturais, ter consciência negra é acima de tudo “Olhar para o lado”. Você já reparou quantos negros tem a sua volta ?! No entanto, continuamos sendo os que mais morrem, os que mais são assassinados, os que menos têm acesso à cultura e à educação e ter essa consciência e saber que a oportunidade de mudar tudo isso está mais perto do que imaginamos é ser parte desse processo de conscientização.
João Pedro Mourão, empreendedor