Pouco a pouco, o cenário para os amantes da sétima arte, em Brasília, é restabelecido, com a chamada flexibilização que redimensiona — mas não liquida — a convivência com a pandemia. Em se tratando de filmes e salas de exibição, dá para se traçar um paralelo junto à premência do restauro e da conservação tão associados a cinematografias mundiais.
Cinemas e público, num crescente, têm posto a cara no sol, ou melhor, nas sombras das salas de projeção. No cenário favorável, vem como bálsamo o anúncio do 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Reaberto em 2013, depois de um gesto de solidariedade da Sala Villa-Lobos (no Teatro Nacional) ter acolhido, temporariamente, o festival de 2012, o Cine Brasília (EQS 106/107) ainda não volta a campo, uma vez que o mais tradicional evento cultural da cidade seguirá on-line, em 2021.
Mas a poeira e os ácaros das 606 poltronas do maior templo de cinema da capital começam a ser retirados. Sem o contemporâneo Cine Cultura (à altura da 507 Sul), o Cine Brasília — que já teve 1.516 poltronas, quando da inauguração, em 1960, na presença de Juscelino Kubitschek, um presidente amistoso com a cultura — resplandece. Pode ser visto como um herói da resistência, ao lado do Cine Drive-in, criado em 1973, e o único do gênero com atividade regular (descontada a contingência da pandemia) na América Latina.
Pelo histórico, o Cine Brasília e o Drive-in têm tudo para acolher o vindouro Eduardo e Mônica, uma adaptação de cinema lastreada pela popularidade da obra de Renato Russo. O mais acertante (num respeito ao espírito poliglota de Russo), do que errante, dos legionários teve muito da visão formatada nos "filmes de Godard", ao rondar espaços outrora vivos de uma Brasília que já comportava o cinema da Cultura Inglesa, a imbatível tela do Karim (111 Sul) e os quase 1.200 lugares do Cine Atlântida (perdido para "fundamentalistas bíblicos" do Setor de Diversões Sul, em 1995, como à época cravou o cineasta André Luiz Oliveira).
O Atlântida — avizinhado dos falecidos Miguel Nabut e Badya Helou, esses vocacionados a sucumbir à onda de exibição de comédias eróticas e pornochanchadas dos anos de 1980 (enquanto o cine Bristol, acolheu, descaradamente, o registro das carnes balançantes) — guarda a curiosidade: abrigou em 1971 uma agitada edição do Festival de Cinema. No campo dos festivais, Brasília se mantém atualizada, em nível estrangeiro, pelas atividades do Cine Cultura no Liberty Mall, que ainda não apresentou seu Biff 2021, num derivado do Fic (Festival Internacional de Cinema), desaparecido com a saudosa dezena de salas da Academia de Tênis. Tudo ainda num período de perda das quatro salas do Brasília Shopping.
Com programações diferenciadas, o Centro Cultural Banco do Brasil e as salas do Espaço Itaú têm cuidado com atenção de cinéfilos ainda ansiosos pelas atividades no Cine Le Corbusier (na Embaixada da França). O Centro Cultural Itapoã (no Setor Leste do Gama), um palco histórico do cinema, criado no ano de 1964, sinaliza a saída da precariedade. Curioso é que, na origem, o Itapoã tenha sido impulsionado pela mobilização de comerciantes locais que o presentearam ao GDF.
Numa situação de retomada, gradualmente, a situação das salas se distancia do quadro desolador em que faziam eco as palavras da repórter do Correio Maria do Rosário Caetano, quando, nos 80, ela via o mercado exibidor brasileiro como "indigente", traçando "programação de péssima qualidade", à época em que persistiram salas como o Cine Astor (no Conjunto Nacional que viria a ter o Cine Márcia). Se já habitou os subsolos da sede da Novacap (nos anos de 1960, com a existência do circuito Bruni, que contemplava as salas Arte, Brasília e Windsor), o cinema local se revitaliza, neste momento, causado o burburinho das 300 salas para Marighella, o filme nacional de repercussão, e, claro, o impacto de Eternos, a atração da Marvel, que jogou terra na exitosa bilheteria de Velozes e Furiosos 9.