A tatuadora Karoline Portela, 30 anos, sempre fez questão de se afirmar como uma mulher negra e empoderada. Autoconfiante, ela demorou a perceber que estava em um relacionamento abusivo. Após sofrer ofensas de cunho racista por parte do ex-companheiro, ela procurou apoio na Casa Akotirene, em Ceilândia. Em janeiro último, começou a fazer psicoterapia e reencontrou a própria potência. "O que me fez buscar o atendimento foi a contribuição sociocultural desse espaço. O suporte foi fundamental para eu continuar a executar meu trabalho, que também é de amparo a outras mulheres pretas", comenta Karoline.
O nome do local onde Karoline conseguiu ajuda faz homenagem a Acotirene, matriarca do Quilombo dos Palmares, em Alagoas. Administrado pela produtora cultural Joice Marques, 35, que exerce função de diretora-geral, o espaço promove oficinas, cursos de profissionalização, além do atendimento psicológico para mulheres negras. "Temos o cuidado de trazer serviços essenciais. Por semana, a casa recebe por volta de 15 pessoas na perspectiva do acolhimento psicossocial. Temos o Café com Afeto, de escuta psicológica, e o grupo que faz consultas on-line", detalha.
Joice destaca a relevância de priorizar a saúde mental das mulheres negras, pois no dia a dia, usualmente, esse cuidado fica em segundo plano. "É nova para a gente essa ideia de cuidar da saúde mental, porque, até então, esse lugar não era nosso. É uma questão estrutural, assim como outras dificuldades de acesso, de representatividade, até dentro da psicologia. É importante falar as suas dores para uma pessoa que vai entender o que você está falando", afirma.
Quem descobriu muito cedo a força das redes de apoio feitas de negros para negros é a rapper e empreendedora Júlia Nara da Silva do Monte, 30. Em 2017, ela criou a Coletiva Pretinhas, em Ceilândia Norte. Entre as atividades do grupo, estão rodas de autocuidado destinadas às pessoas negras. Com cinco terapeutas e a participação de cerca de 20 mulheres, o local é um espaço de fortalecimento. "Com recursos e doações vindos de outros projetos, conseguimos investir em atendimentos psicológicos para as participantes. Em 2020 (na pandemia), realizamos ações de acompanhamento e rodas de conversa on-line, sempre abordando a saúde mental", explica a coordenadora.
Ela conta que são muitos os caminhos que levam as mulheres a precisarem de ajuda psicológica, desde perdas afetivas, até a fome e o sentimento de incapacidade. "A nossa coletiva entende que a falta de acesso à informação sobre saúde mental dificulta, sim, a busca por esses atendimentos. Mas a dificuldade financeira cria barreiras para que não haja procura nem continuação desse serviço psicológico, que é tão importante para o bem viver da comunidade preta", analisa.
Comunidade engajada
Em Ceilândia Sul, o espaço Jovem de Expressão, na Praça do Cidadão, oferece cursos de educação, empreendedorismo e, também, atendimento psicológico para a comunidade em geral. Foi lá, que o tatuador Lucas Rodrigues dos Santos, 27, recebeu atendimento para enfrentar a depressão, as crises de ansiedade e o estresse emocional. Há três meses, ele começou a fazer terapia no local todo sábado de manhã e, aos poucos, consegue se reerguer. "Estava tendo crise de pânico e não conseguia sair de casa. Comecei a fazer o tratamento e não estou tendo mais crises, tanto que estou recebendo alta do Jovem de Expressão. Tenho dois últimos acompanhamentos e uma entrevista para ser liberado", alegra-se.
A terapeuta comunitária Nayane Cruz Gomes, 24, trabalha há cinco anos num projeto no Jovem de Expressão. Uma vez por mês, ela organiza rodas de terapia com turmas dos cursos técnicos oferecidos no local. Dentro da instituição, ela é coordenadora do projeto chamado Periferia Viva, com atendimento clínico a 20 pessoas semanalmente com um grupo de psicólogos, mas também com terapias holísticas.
"(Oferecemos) reiki, ioga, massoterapia, taroterapia. Também temos um atendimento individual, que são as demandas que surgem por semana ou por dia. Às vezes, são três ou quatro. Então, por semana, em média, atendo cerca de 15 pessoas de maneira emergencial, porque o dia inteiro tem pessoas precisando conversar", conta a psicóloga.
Nayane explica os fatores da pandemia que influenciam nas dificuldades da população negra em ter equilíbrio mental, o que pode ser amenizado com união do próprio povo periférico. "As maiores demandas que chegam de pessoas negras é a falta de acesso. Trabalhar de maneira formal demanda tempo, e essas pessoas da periferia não possuem esse tempo, porque estão compartilhando outras demandas de vida. Quando a gente está em grupo, não passa fome na periferia, e tem a possibilidade de um vizinho nos auxiliar. Se não nos auxiliar com alimentação, pode com a presença", analisa a terapeuta do Jovem de Expressão.
Eventos de reflexão
Outro grupo que apoia a saúde mental da população negra é a Associação Nacional de Psicólogas/os e Pesquisadoras/es Negras/os (Anpsinep), com núcleo no DF, e que conta com 25 psicólogas e psicólogos que fazem palestras, eventos virtuais de reflexão do bem-estar mental. Psicóloga clínica e doutoranda em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília (UnB), Paula Gabriela, 28, conta que o grupo é comprometido com a psicologia e as relações raciais, e que tem o objetivo principal de pensar ações de enfrentamento ao racismo.
"Quando a gente fala de saúde mental voltada para a população negra, é muito importante dizer o quanto que o racismo tem sido nocivo para a saúde mental das pessoas ao longo da vida. As pessoas precisam lidar com muitas situações de estresse produzidas a partir dessas experiências racistas. Então, temos várias pesquisas que apontam que, principalmente, jovens negros, estão mais expostos à depressão e ao suicídio no Brasil", afirma a especialista, que também é mestra em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
De acordo com a mestranda em psicologia clínica e cultura na UnB e integrante da Anpsinep Joyce Avelar, o que se percebe no comportamento de pacientes é um nível de adoecimento relacionado à vulnerabilidade social. "A população negra, LGBTQIA e os povos indígenas estão em situação de vulnerabilidade social e ficam suscetíveis à vulnerabilidade psicológica. Como sintoma de inibição social, têm sentimento de inferioridade, de pouca capacidade relacionado à impotência social. Então, o trabalho na clínica é tentar compreender como esses fatores sociais afetam esse sujeito", pontua.
Coordenadora da Diretoria de Atenção à Saúde da Comunidade Universitária (Dasu), da Coordenação de Articulação de Redes para Prevenção e Promoção da Saúde (CoRedes), a professora de psicologia da UnB de Ceilândia Josenaide Engracia Santos comenta que a população negra é a que sofre mais o impacto da pandemia da covid-19.
"Vários fatores históricos e atuais influenciam no impacto da covid-19 junto à população negra. O racismo estrutural é um dos obstáculos para um acesso à saúde adequada e condição econômica estável, provocando um estresse intenso, culminando em medo, incertezas, ansiedade e depressão. (É preciso) investir em promoção à saúde mental para reduzir o efeito da pandemia na população", analisa.
Para a Josenaide, o apoio psicossocial é importante para que os negros sejam orientados quanto à violação de direitos. Segundo ela, eles precisam "compartilhar informações sobre possíveis manifestações emocionais esperadas, mudanças nas dinâmicas familiares e possíveis reações sociais. Elaboração e difusão de material de informação dedicado à promoção da saúde mental e o bem-estar psicossocial. E a universidade tem o compromisso institucional no enfrentamento do racismo", reforça a docente
Procurada, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal afirma não ter dados étnico-raciais sobre problemas de saúde mental. A reportagem solicitou esses números, mas a SES-DF não possui o levantamento. "A Secretaria de Saúde não possui esse recorte por divisão racial", diz a pasta.
O Ministério da Saúde informou que sintomas, como transtorno de ansiedade, crise de pânico, não são informações obrigatórias de pacientes durante as consultas de vigilância epidemiológica do Serviço Único de Saúde (SUS). A pasta também não informa números sobre suicídios ou de atendimentos personalizados à população negra do país.
Fala de especialista
"Quando se fala em políticas públicas específicas, a população negra não tem acesso ao serviço (de saúde). A gente começa com a desigualdade econômica e racial que vem de uma estrutura de muito tempo. Ainda ocorre hoje a ideia de que a população negra teria mais resistência, que tolera mais sofrimento e dor, as pessoas mais afetadas foram negras", afirma Nádia Meireles Moreira, mestranda em psicologia clínica e cultura da UnB e integrante do núcleo DF da Associação Nacional de Psicólogas/os e Pesquisadoras/es Negras/os (Anpsinep).