Catar pitangas

Correio Braziliense
postado em 28/11/2021 00:01

A minha fruta preferida é a pitanga, essa preciosidade brasileiríssima, nativa da Mata Atlântica. Gosto de olhar, de catar e de comer a frutinha vermelha. Existem várias pitangueiras espalhadas pelas superquadras.

Já catei muito quando morava no Plano e, agora, cato no quintal de minha casa ou em uma árvore do condomínio onde moro. É muito diferente colher frutas diretamente das árvores e comprar no supermercado. Ao catar nas árvores, a gente tem a sensação de ser alvo de uma dádiva.

O maestro Levino de Alcântara contava uma história insólita sobre a sede da Escola de Música de Brasília. No fim da década de 1960, ele passava pela L2 Sul, avistou um terreno amplo e bateu-lhe uma intuição fulminante. "É muito bom para a Escola de Música, vou invadir". E, para tomar posse, lembrou-se do Recife e resolveu demarcar o território plantando mudas de pitangas. Em frente, ele improvisou uma placa com a indicação: "Escola de Música de Brasília".

Muitas décadas depois, perguntei ao maestro como pensava a questão legalidade de seu ato e ele me respondeu, bem-humorado: "Eu não invadi para mim. Invadi para a música e para a cultura de Brasília. Invadi para o próprio governo". Eram tempos de faroeste caboclo, mas, graças à audácia e ao amor à cultura de Levino, temos a Escola de Música de Brasília.

A vizinha resolveu construir uma casa, no terreno ao lado, havia diversas árvores frutíferas no limite dos dois lotes e decidimos, de comum acordo, cortar algumas, pois impediam a construção de um muro. Tentei explicar a situação a meus dois netos, Aurora, de 8 anos, e Judá, de 4. A princípio, eles entenderam, mas quando viram a ação devastadora da motosserra, ficaram indignados.

Olhavam a cena aflitos, com os olhos grudados na porta de vidro. A certa altura dos acontecimentos, Aurora me procurou e pediu o celular emprestado. Perguntei para que e ela respondeu: "Vou ligar para o 190 e chamar a polícia". Para uma criança, derrubar uma árvore é sempre um crime, não importa a razão.

Mas a pitangueira permaneceu. Ela deixou de produzir frutos durante alguns anos. Não sei se por causa da poda nas outras árvores e do arejamento para receber os raios do sol, voltou com uma safra renovada de frutinhas vermelhas. Durante as férias, Aurora e Judá fizeram uma festa cotidiana com o simples ato de catar as pitangas. É algo inesquecível para uma criança.

A poeta gaúcha-brasiliense Maria Lúcia Verdi escreveu um lindo poema em que celebra o ato prosaico de apreciar pitangas. O poema contempla, a um só tempo, os prazeres de ver, de colher e de degustar as frutinhas vermelhas. Sigamos a trilha de Verdi: "Catar pitangas, mais que colher/catar primeiro com o olhar o tom certo do maduro/buscar a que se desprenderá ao mais leve toque, quase sopro/não ser enganado pela luz — a madureza, às vezes/questão de ângulo".

Verdi ritualiza o ato trivial com uma atenção, uma concentração e uma delicadeza que intensificam e multiplicam o prazer sensorial com as frutinhas vermelhas. Ela quase que insinua uma arte de escolher, de catar e de degustar pitangas: "buscar o rubi pleno a forma já plena/apenas as que se soltam/desmaiadas entre os dedos leves, estão prontas para a boca/a língua, o nem mastigar/mantê-las na boca por um tempo, ainda que brevíssimo/catar pitangas como as catadoras de chá na China/as infinitamente delicadas".

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