Formada há mais de 10 anos a partir da disputa de gangues, a maior facção do Distrito Federal, o Comboio do Cão, age com requintes de crueldade e tenta se instalar na capital, mas sofre seguidos reveses da polícia e do Ministério Público do DF. Em nove dias, membros da organização criminosa participaram de, ao menos, dois casos de extrema violência: a morte de uma jovem, de 21 anos, em um motel de Taguatinga, e a tentativa de homicídio contra um sargento da Polícia Militar (PMDF) no Riacho Fundo 2. Com base em inquéritos policiais, processos e depoimentos de testemunhas sigilosas, o Correio Braziliense detalhou como funciona a estrutura da facção e como os membros se articulam para traficar drogas e matar adversários.
O início do Comboio do Cão, o CDC, ajuda a explicar o atual estado da organização. De dentro da Penitenciária do Distrito Federal 2 (PDF 2) no Complexo Penitenciário da Papuda, entre 2008 e 2009, três detentos, conhecidos como Rogério Peste, Marcão 121 e Marcelo Lacraia, decidiram fundar a facção. No começo, a maioria dos membros era de dentro da cadeia, mas à medida que ganharam a liberdade, as diretrizes foram destinadas a outras pessoas. Entre os nomes estão: Fabiano Sabino, vulgo FB, preso desde 2017 e Willian Peres Rodrigues, o Wilinha, que estava foragido desde 2019 e foi capturado em Paranhos (MS) no final de abril deste ano. Com a dupla encarcerada, outro criminoso assumiu o posto e está na mira da polícia.
Desde o surgimento, a base da facção opera em pontos estratégicos no Riacho Fundo 2, como em bares e em casas de criminosos. São nesses locais que os integrantes armazenam as armas e drogas que vêm de outros estados e do Paraguai. Boa parte dos armamentos são Glock .9mm e .40. Algumas vêm com um marcador de chassi com as letras “FB”, referindo-se a Fabiano. Em um dos depoimentos cruciais para a investigação, uma testemunha revelou, ao menos, cinco locais diferentes onde os faccionados escondiam os ilícitos. Segundo o delegado-titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Decor), Adriano Valente, a polícia mapeia pontos para desarticular e impedir a instalação do grupo. "Eles também ficam em regiões como Samambaia, Recanto das Emas e Planaltina. Seguimos com o monitoramento ininterrupto sobre essa e outras facções”, frisou.
Para trazer as armas ao DF, o grupo costuma enviar ao menos seis caminhonetes produtos de roubo para o Paraguai. As armas são transportadas em carros comuns e vêm escondidas em forros de portas e nos estepes. Nessa função, trabalham pessoas que têm o mínimo de conhecimento na área e que tentam evitar chamar a atenção da polícia. Um dos envolvidos fica responsável por instalar o seletor de rajada, dispositivo que acelera o disparo das munições; e outro fica encarregado de fazer a manutenção das armas, adulterando a numeração, adicionando números depois das barras.
Guerra sanguinária e ruptura
A disputa por pontos de tráfico de drogas resultou em inúmeros assassinatos embasados no “acerto de contas”. No DF, o CDC é investigado em, pelo menos, 500 ocorrências e 30 homicídios. Em reação à criminalidade, as operações desencadeadas pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e do MPDFT impedem o crescimento do grupo, como foi o caso da operação Rosário, deflagrada em agosto de 2019, em que 46 faccionados do Comboio do Cão foram presos por atuar no tráfico de drogas, homicídios, lavagem de dinheiro, entre outros crimes.
Junto ao Comboio do Cão, outras gangues dominavam algumas regiões do DF, como no Gama, Santa Maria e Entorno. Entre os grupos estão o Grupo do Galba, a facção Faixa de Gaza, os Irmãos Metralha, a organização criminosa da Quadra “50” do Gama, além dos traficantes que atuavam de forma independente. Até 2013, essas quadrilhas não tinham rivalidades entre si e até chegavam a se apoiar na criminalidade. A ruptura veio depois da prisão de Bruno Soares Leite, o Leitão. Ele era ligado ao grupo “Irmãos Periquitos", comandado por Edson Marques da Silva e Francisco de Assis Marques da Silva e contava com outros aliados: Fabiano Soares, o Pepita; Helio Alves, o Helinho, Maicon Nascimento, Victor Wagner e os Meninos da Quadra “50” do Gama. Todos rivais do CDC.
Para se livrar da cadeia, Francisco de Assis entregou à polícia a localização do hotel onde Bruno Leitão, o comparsa, armazenava drogas e armas: uma regra quebrada na “conduta do crime”, geralmente punida com morte. Quando traficantes locais souberam do ato, decidiram se vingar e matar o irmão de Assis, o Edson. No entanto, Edson, tomando conhecimento do risco de morte, agiu primeiro e assassinou Ferro Velho em setembro de 2013, às 9h30. Em uma guerra sem fim, membros do Comboio do Cão se articularam e mataram Gilson Ramos de Queiros, em forma de “resposta” ao crime cometido pelos Irmãos Periquitos.
Edson de Assis chegou a ir ao Rio de Janeiro em 2011 para firmar sociedade de negócio Antônio Francisco Bomfim Lopes, o Nem da Rocinha, traficante preso e ex-chefe do tráfico da Favela da Rocinha pela facção Amigos dos Amigos (A.D.A). Na lista de inimigos, estava FB, o chefe do Comboio do Cão. À época, Edson chegou a oferecer uma Land Rover de R$ 400 mil para quem matasse Fabiano. Temendo pela vida, Edson deixou o DF e se desfez de uma loja de automóveis e vendeu um posto de combustível que tinha na QNL para um traficante.
Depois da saída dos Irmãos Periquitos da capital, o ponto de tensão retornou. Dessa vez, a guerra do Comboio era com a turma de Pepita, comandada por Fabiano Soares. Em um dos conflitos, Fabiano foi até o Centro de Progressão Penitenciária (CPP), o Galpão, para tentar matar Rafael Abelha, um dos chefes do CDC, em 2014. Abelha estava escoltado por faccionados. Houve troca de tiros, mas ninguém morreu. Dois meses depois, outra tentativa: a turma de Pepita foi novamente ao CPP e disparou mais de 30 tiros contra o carro em que estavam Abelha e Wilinha, que conseguiram sobreviver.
Em uma guerra interminável, Abelha, Fabiano FB, Wilinha e outro membro do CDC foram até o Setor Leste do Gama e mataram Pepita. Outro rapaz que estava com ele também foi atingido com vários disparos e morreu. No momento do ataque, Pepita tentou correr, mas levou um tiro fatal. No lugar de Pepita, assumiu Helinho, o mesmo que matou Rafaelzinho, aliado do CDC, em frente ao fórum de Santa Maria, em 2016. O carro em que a vítima, que seria réu em audiência, estava, foi atingido com cerca de 60 tiros. No comando, Helio Alves associou-se à viúva de Pepita e passou a cobrar as dívidas antigas. A turma de Helinho matou, ao menos, três pessoas em acerto de contas.
“A diferença entre o PCC e Comboio é que o PCC é mais ostensivo e as regras são conhecidas. No caso do Comboio, essas normas são ocultas. Temos desencadeado grandes operações na intenção de desarticular esses grupos e temos tido sucesso”, finalizou o delegado Adriano Valente.
Prisão
Integrante do Comboio do Cão, Ruan Rodrigues de Souza, o R7, foi preso por feminicídio contra a namorada, Ana Carolina de Lima Araújo, morta a tiros em um motel de Taguatinga. Ruan foi preso durante uma festa em Samambaia pela PCDF junto a José de Alencar Fernandes Filho, vulgo “Filhote”, também envolvido no crime.
Palavra de especialista
"Temos observado a expansão de facções prisionais por todo o país, mas também o surgimento de novos grupos, os quais têm se valido claramente da estrutura de estado. A ação repressiva, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a transferência de lideranças por meio do Sistema Penitenciário Federal (SPF), entre outras ações, não foram suficientes para conter as facções. No caso do Distrito Federal, as ações do grupo conhecido como "Comboio do Cão" têm se espelhado, em alguma medida, nas facções de outros estados e desafiado a instalação destas no DF. A grande verdade é que as mercadorias ilegais que estão em jogo e o controle de rota para o escoamento do tráfico tem feito o "olho crescer" de pequenos traficantes, ainda muito artesanal porém buscando sobrevivência por meios e maneiras ilícitas, o que certamente se agravou no contexto de pandemia e com a situação caótica e de múltiplas crises na qual se encontra; a economia do crime encontra seus álibis ilegítimos. Nessa esteira, tem seguido muito incipiente o "Comboio do Cão", pelas bordas. Enquanto o Estado não atacar a política de drogas, pensar na questão da seletividade penal e nos filtros da entrada do sistema prisional, no problema do encarceramento em massa, na questão dos presos provisórios e não priorização às penas e medidas alternativas, dificilmente a economia do crime e as facções perderão força. Até lá, continuaremos observando a disputa por hegemonia de território e poder entre fluxos e circulação de mercadorias ilícitas entre agentes do Estado e faccionados presos e não presos, no DF e Entorno. Além de espalhar terror, medo e pânico moral na população, o fortalecimento desses grupos pode reconfigurar a pauta da segurança no DF, a exemplo do que já vem acontecendo em outras Unidades da Federação”,
Welliton Caixeta Maciel, professor de antropologia do direito e pesquisador do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília (UnB)
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.