Ao revelar a sistemática do lockdown no Reino Unido, o filme Minha amiga do sanatório, na programação do consagrado Assim vivemos — Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência, trata de Nina, abrigada num orfanato em situação de calamidade com a pandemia. Uma assistente social russa, no enredo do filme, a acolhe em casa. Também em condições adversas de restrições, Fale conosco (outro filme do festival) trata de comunicação e expressão de pessoas com deficiência, numa realidade experimentada pela estudante de Brasília Clarinha Mar. Ela é voz ativa no Instagram, no qual conta com mais de 160 mil seguidores. Com paralisia cerebral, Clara Marinho incorpora a sigla PCD (pessoas com deficiência) no dia a dia como algo distanciado de uma condição. Daí ter sido escolhida para palestrar na Rede Sarah (Área Especial da Asa Sul, na Qd. 501), às 15h30 desta quinta (4/11), para um seleto grupo de 70 pessoas com diferentes deficiências.
A popularidade nas redes sociais se deveu à maneira como trata das limitações de parte dos movimentos do corpo e de como a paralisia afeta a fala dela, mas nunca a autoestima. "No começo eu achei legal ver a quantidade de pessoas me seguindo. Aí alguns famosos compartilharam meus vídeos e eu fiquei muito animada, mas logo depois veio o lado contrário... eu pensei 'e agora, o que eu vou fazer?'. Aí tive crises de ansiedade com aquele contexto e quantidade de pessoas para responder. Hoje eu acho legal, recebo muitas mensagens bonitas e isso me dá forças. Porém eu não coloco as redes sociais como prioridade e não endeuso pessoas, nem elogios. Nem ignoro e nem coloco a rede social como prioritária na minha vida. Senão eu não vou dar conta", explica ela, em entrevista ao Correio.
A poeta e influenciadora Clarinha Mar traz interesse particular para os brasilienses, ao estrelar o média-metragem Fale conosco, assinado por Fábio Costa Prado e finalizado neste ano. Ela incorpora um conceito de PCD mais atrelado à característica da pessoa e se dispôs a ampliar os debates nas redes sociais, justamente quando a pandemia do novo coronavírus se viu acentuada, em 2020. Fale conosco coloca em primeiro plano situações difíceis para Clarinha Mar e outras 11 pessoas. A estudante de letras da UnB embarcou na diferenciada proposta idealizada pelo diretor. O filme, dada a pandemia, foi reestruturado, e os encontros tiveram que ser remotos. "Desenvolvemos vídeos tutoriais com conceitos básicos de iluminação, enquadramento, movimento e áudio. Cada família filmou com celulares próprios, num resultado de boa qualidade", explica Fábio Costa. Como ele adianta, o filme celebra as características individuais de cada uma das 12 pessoas e é dedicado à irmã dele, Fabíola, que tinha paralisia cerebral e era não-verbal.
Fábio diz que essas são duas características em relação à irmã que não a definem. “Hoje eu levo comigo essa palavra, “característica”, por causa da Clarinha, que numa de nossas conversas se referiu a pessoas com deficiência como pessoas com “características peculiares”. A palavra “característica”, por ter uma neutralidade, fez muito sentido pra mim e desde então a tenho adotado ao me referir às especificidades que todos carregamos como seres humanos”, sublinha Fábio. Poemas, vídeos e a capacidade de comunicação de Clarinha impactaram o diretor do filme pela “franqueza, sabedoria, visão e capacidade inequívoca de articular, de forma eloquente, pensamentos”. Com o dom da palavra, ela carrega a concretude de opiniões e a abstração da poesia, pelo que ele conta.
Distribuindo estrategicamente os discursos e histórias de 12 participantes, a criatividade serviu como meta de Fale conosco, feito de modo colaborativo, num contexto de empoderamento e humanização. "A resposta mais gratificante foi perceber o quanto o processo de fazer o filme durante um momento tão complicado acabou sendo uma experiência rica e importante para todos os envolvidos, desencadeando mudanças positivas nas vidas de vários deles", observa Fábio Costa. De Clarinha ficou a admiração de algumas caraterísticas, como ter senso de humor, tranquilidade, humildade, visão de justiça e natureza positiva, “além do sorriso”.
Atuante
A dinâmica de Clarinha Mar junto às interativas redes sociais desemboca em mais admiração. "Eu gosto dessa interação nas redes sociais. É cada mensagem bonita que eu recebo e que eu não esperava — eu esperava que fossem zombar de mim porque eu sou aparentemente diferente. Eu também recebo presentes, mimos e normalmente os mimos que recebo são feitos pelas próprias pessoas que estão me vendo", conta a atriz eventual. A exemplo do curta argentino A primeira lei (também incluído no evento), que mostra duas irmãs empenhadas na idealização de uma propaganda com protagonismo para pessoas com deficiência, Clarinha Mar sabe da estrela que carrega, numa linha de frente contrária a preconceitos e antenada nos ajustes para a boa vontade de pessoas dispostas a auxiliar PCDs. Nem sempre a intenção carrega protocolos adequados. Mesmo com a fama e a exposição, a estudante de 23 anos não se deixa levar pela visibilidade alcançada. "Fico realmente feliz. Talvez, se eu me deixasse levar, eu estaria com muito mais seguidores, mas a minha saúde também estaria prejudicada (porque o excesso de redes sociais não é saudável). E o que eu mais gosto nesta interação não é o tanto de seguidores que eu tenho, não são as pessoas famosas que compartilham os meus vídeos, não é esse reconhecimento imediato", avalia a poeta.
Responsável por muitas quebras de paradigmas e mudanças de visões, Clarinha Mar celebra o bom momento: "O que mais me deixa feliz é quando alguém com deficiência vem falar comigo, se identifica. Isso pra mim não tem preço! Ou quando uma família vem falar comigo é diz assim 'nossa, Clarinha, eu vi tal vídeo e você me lembrou minha filha, e você me lembrou minha neta... e você me lembrou tal pessoa que eu perdi e que tinha deficiência.' Ou então: 'Ah, eu vejo o seu vídeo e vejo a minha filha que é pequenininha e que tem paralisia cerebral. E eu a vejo em você, quer dizer, uma mulher independente, uma mulher segura.' Isso pra mim não tem preço".
Além da palestra com Clarinha, o festival Assim Vivemos trará o debate Educação para Todos (nesta quinta, às 19h30), com a pedagoga especialista em Surdez e Educação Especial Silvana Patrícia de Vasconcelos e o mestre em Psicologia Escolar e pesquisador de desenvolvimento humano Davi Contente Toledo. Em 9 de novembro, será a vez de explorar o tema Parceria Colaborativa, a partir da exibição do filme Elas eram colegas de quarto, formatado por postagens de vlogs de duas amigas, dentro da Universidade de Syracuse (Nova York), em que captam surpresas de supervisionar e auxiliar colegas com deficiência. Dia 11 de novembro Em Busca de uma voz debaterá feminismo e aspectos de sexualidade, a partir dos filmes Silenciadas e Seremos ouvidas. Tudo pode ser acessado no site do festival.
O papel das artes
Clarinha Mar lembra de uma vez ter perguntado, quando do início da graduação em Letras no Instituto Federal de Brasília, a um professor de literatura se valeria a pena continuar escrevendo poesia. “Não lembro das exatas palavras, mas ele me respondeu que eu escrevesse, não para agradar alguém, mas pela minha necessidade. Hoje, escrevo quando necessito. Ensinaram-me uma vez que para julgar, eu teria que primeiro conhecer. Passei um tempo tentando entender o que era literatura. Hoje eu apenas leio. De cada livro, aceito ou não pela crítica, procuro reparar na escolha das palavras, nas ideias ali presentes, no que poderia ser, no que não foi. A poesia sai de mim, quando precisa sair”, conta a estudante que teve o poema (leia, abaixo) incluído no filme Fale comigo.
O contato com as artes também se mostra libertário, em muitos filmes do Assim vivemos. Com direção de Mohammed Sahraei, Arghavan revela uma musicista e cantora iraniana extrapolando limites da capacidade visual e de preceitos de sua terra. Para além da afirmação no teatro, Eu sou Irina mostra a superação de um quadro depressivo de uma mulher que, após acidente perdeu audição e visão.
No espanhol Sete léguas, crianças com deficiência se veem integradas a partir dos passos na dança. Noutro filme, num contexto de amparo, sem as angústias cotidianas, o dançarino Marcos Abranches, em coreografia emotiva, se desprende do desequilíbrio, no filme O artista e a força do pensamento (de Elder Fraga).
O que te faz mover (?)
Me sinto só
Por intermédio de outrem
Sei o que tenho
Em meu peito
Não apenas bate um coração
Coração não é tudo
É só parte
Parte de um todo
Indefinido
Contraditório
Complexo
Completo
Quem é você?
E o que tem em minha defesa?
A julgar complexos
Em lata de farinha
A contar os grãos
Almejando controle do incontrolável
Sou pessoa
E ate hoje tenho o dever
De me afirmar
Pois não falo
E fico à mercê de gente-limite-vazio
Poema de Clarinha Mar, para o filme Fale consoco
Festival tem leque de atrativos
A diversidade de propostas dos filmes selecionados na 10ª edição do Assim Vivemos — Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência traz programação híbrida (presencial e on-line), para os espectadores que terão até 14 de novembro para conferir 29 filmes criados em 14 países. Mobilidade, autonomia, concretização de sonhos, difusão de direitos e inclusão social despontam como temas na programação, com acesso gratuito tanto nas sessões presenciais (no CCBB, até 7 de novembro) quanto nas exibições on-line, estendidas até 14/11, com liberação gradual dos filmes no site www.assimvivemos.com.br.
Junto com o Brasil, que terá sete filmes no evento dirigido por Graciela Pozzobon, países como Rússia, Estados Unidos e Espanha terão mais títulos apresentados. Com troféu idealizado pela artista cega Virgínia Vendramini, os títulos serão premiados em cinco categorias pelo júri e, noutra instância, pelo público. Audiodescrição, legendas e interpretação em Libras (Língua Brasileira de Sinais) trarão suporte para os espectadores. Recursos como a legendagem para surdos e ensurdecidos (LSE, com informações que extrapolam os diálogos) ampliarão o alcance.
Tratando de tópicos inclusivos e de processo educacional dentro da rede pública, o diretor do longa Não me esqueci de você, Rene Lopez, assume protagonismo frente à responsabilidade social. "Temos uma legislação bem avançada quanto à inclusão. O que faltam são políticas públicas para cumpri-la em sua totalidade. Ações pontuais de professores, diretores e coordenador, na prática, tornam as escolas mais inclusivas", pelo que observa Rene. Na perspectiva do realizador do longa, falta seriedade em espaços que antecedem à escola, como nas secretarias, diretorias de ensino e, principalmente, no Ministério da Educação.
"O sistema educacional precisa ser um espaço de amparo para as crianças e suas famílias e não palco de disputas judiciais para que seja cumprido o mínimo do que é previsto nos documentos normativos", comenta Rene, algo otimista, mas em cenário que contemple ações comprometidas com maior empenho e profissionalismo na gestão da inclusão no espaço escolar.
Na programação do Assim vivemos, os Estados Unidos trazem uma produção animadora: Sempre positivo, apoiado na figura de liderança de Philip Craven, ex-presidente do Comitê Paraolímpico. Integrantes da seleção de atletas cegos da Costa Rica, tratam da vivência com o futebol, em Os quatro sentidos (de Gabriel Zumbado). No curta-metragem B-1, o jogador profissional de futebol Sergey também expõe a vida pessoal e de engajamento.
Assim vivemos — Festival internacional de filmes sobre deficiência
CCBB (SCES, Tr. 2). Até 14 de novembro, com sessões presenciais (até 7/11) e sessões on-line e debates (até 14/11). Entrada gratuita. Informações: 3108-7600.
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