O acervo de mais de 11 mil documentos de Lucio Costa, arquiteto pioneiro e reconhecido pelo projeto do Plano Piloto, saiu do Brasil. A transferência de cartas, esboços, projetos, fotos, bilhetes e rascunhos do arquiteto e urbanista para a Casa de Arquitectura, em Portugal, causou controvérsia entre os admiradores, especialmente em Brasília. Até então, o material encontrava-se no Instituto Antônio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro. Porém, a instituição alegou que não poderia mais mantê-lo. Segundo a família de Lucio Costa, a decisão foi tomada em consenso e considerou a importância dos materiais para a história do país e da capital federal.
Os documentos foram transferidos em partes, entre 2020 e 2021 e estão todos em Portugal. A neta do arquiteto Julieta Sobral contou ao Correio como foi a decisão de doação do material. “Em 2019, o Instituto Tom Jobim nos procurou e disse que precisávamos tirar o acervo de lá até o fim do ano. Em 2018, eu havia visitado a Casa de Arquitectura e gostei muito da estrutura deles. Então, foi o primeiro lugar em que pensei para doar o acervo”, disse. Segundo ela, a família não recebeu nada em troca do material e todos concordaram com o local para o qual mandariam os documentos.
Julieta afirmou que não pensaram em abrir a questão para discussão pública. “Eu sabia que geraria reações adversas. Mas, como é um acervo particular, a decisão também foi”, considerou. Apesar de estar firme e satisfeita com o repasse, ela preferia ter mantido tudo no Brasil. “Gostaria de não ter precisado fazer esse movimento. Porém, aqui, falta uma consciência de preservação cultural. Ainda vamos chegar lá, mas, por enquanto, não temos condições”, disse. Ela destacou que o fato de estar em outro país não retira a brasilidade do acervo. “Não é sobre possuir, é sobre difundir esses documentos. É o pensamento brasileiro para novas audiências. O Lucio é, e sempre será, brasileiro, assim como o seu legado, e não é a posse física dos documentos que vai mudar isso”, destacou.
Manifestações
As reações à notícia da doação do acervo do arquiteto foram diversas. O secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues, reagiu com um misto de surpresa e decepção. “Se a preocupação é manter o acervo preservado e disponível ao público, inclusive com ferramentas digitais, temos todas as condições de abrigá-lo”, disse. “Essa ideia de que não temos como cuidar é uma grande piada de mau gosto. O fato é que ninguém nos procurou, infelizmente. Agora, quem quiser ver pessoalmente, precisa ir a Motosinhos, no interior de Portugal, próximo a cidade de Porto.”
Silvestre Gorgulho, jornalista e ex-secretário de Cultura do DF, considerou que o repasse foi uma perda, mas exaltou a genialidade de Lucio. “A marca revolucionária dos projetos de Lucio Costa moldou a criação da nova capital no cerrado brasileiro, considerada, em 1987, Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Brasília é a única cidade que nasceu filmada e fotografada, provocou uma rica história de mudanças, mas tem lideranças de memória curta. Perdemos mais uma. Não será a primeira e nem a última vez”, disse.
Sem debate prévio
Para o arquiteto Luiz Philippe Torelly, a notícia da doação do acervo foi uma surpresa. Ex-diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ele acredita que Lucio Costa tem um significado particular para a cultura brasileira e lamenta não ter havido debate prévio e interlocução com a sociedade. “Em Brasília não tem uma instituição decente, está tudo abandonado. Mas tem a Fundação Roberto Marinho, o Masp, tem muitas. Imagina se o acervo do Camões viesse para o Brasil, como os portugueses se sentiriam?”, diz.
Historiadora de arte e jornalista Graça Ramos, autora de Palácio Itamaraty: A arquitetura da diplomacia, concorda com o colega e acha que a família deveria ter levado o problema a público para dar chance às instituições brasileiras de oferecerem abrigo para o acervo. “O acervo está na mão da família e eles podem fazer o que quiserem, claro, mas não há discussão coletiva e isso passa para outro país. Para mim, é se render a uma lógica colonial. O que é bom vai para além-mar”, diz.
Em contrapartida, o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Andrey Rozental acredita que a doação foi a melhor decisão. “Desde a morte do Lucio Costa, a família tem se mostrado exemplar na tarefa de preservar o acervo, o que não é fácil nem barato. Porém, era uma morte anunciada. As políticas do país em relação à memória e preservação documental são frágeis e delicadas demais para tratar de documentos tão importantes”, considera. Ele afirma que a Casa de Arquitectura tem melhores condições de garantir a preservação da memória de Lucio. “A instituição portuguesa tem documentos de vários outros arquitetos, não só portugueses. Têm uma estrutura invejável e todas as condições de manter o acervo”, completa.
Nova casa
Em nota, a Casa de Arquitectura informou que toda a documentação está sendo tratada e digitalizada para estar disponível on-line no ano que vem. “A Casa fica responsável pela preservação do acervo nas melhores condições nas cinco áreas de arquivo e vai fazer a gestão da política dos empréstimos de diversos elementos para múltiplas utilizações — exposições, publicações e outras formas de divulgação da obra. A Casa compromete-se ainda a manter acessíveis os suportes físicos que podem ser consultados na Casa da Arquitectura mediante marcação prévia”, afirmou.
Além disso, o local se sente honrado em receber os arquivos. “É uma distinção para a CA acolher o patrimônio desta figura ímpar do modernismo”, destaca ao Correio o presidente da instituição, José Manuel Dias da Fonseca. O diretor-executivo da Casa, Nuno Sampaio, considera que o objetivo é difundir os projetos. “Queremos levar grandes nomes da arquitetura para o mundo. Estamos sempre de portas abertas para visitas e exposições. Os arquivos de Lucio Costa são de extrema importância e merecem ser preservados corretamente”, comenta. Nuno destacou que a Casa prepara um programa de bolsas de estudos para arquitetos, em parceria com o governo português.