Noite de caos
Lembro de muitas vezes estar na arquibancada do Teatro Galpão e flagrar alguém entrando, sorrateiramente, na sala e sentar-se no chão para ver o espetáculo. Era o embaixador Wladimir Murtinho, secretário de Cultura do DF. Murtinho amava o teatro como poucos, assistia a todas ou a quase todas as montagens dos grupos brasilienses. Estimulava muito ao teatro amador.
Considerava que uma capital não poderia ser passiva, não podia apenas receber os espetáculos de fora dessa maneira: “Capital não pode ser passiva; capital tem de irradiar.” Ele tinha uma visão em sintonia com o projeto dos criadores de Brasília, que colocaram a arte integrada de maneira indivisível com a arquitetura, para lembrar aos governantes a relevância da cultura. A arte não deveria ser reduzida a mero cenário para a vanguarda do atraso.
Aquele território da 508 Sul já foi chamado de Broadway candanga nas décadas de 1980 e 1990. Lá, estava instalado um respeitável conjunto de casas de espetáculo: o Espaço Cultural Renato Russo (que se chamava Centro de Criatividade da 508 Sul), com o Teatro Galpão, o Teatro Galpãozinho, a Sala Multiuso, a Sala Marcantonio Guimarães e, ao lado, o Teatro Escola Parque. Os atores não se formam nas salas suntuosas; eles se forjam é nos teatrinhos precários.
Em 1982, assisti Renato Russo, magricela e de óculos, pular de uma abertura na parte alta do teatro rumo a um palco suspenso, segurado em uma corda, como se fosse um Tarzan do Terceiro Mundo, na peça O último rango, de Jota Pingo. Empunhava uma guitarra, metralhava sons distorcidos e berrava os versos de Geração Coca-Cola.
E, ao fim do espetáculo, o público e os mendigos dos arredores eram convidados a compartilhar um sopão, preparado pelos atores, em um tacho enorme, enquanto a peça era encenada. A peça misturava antropofagia com o desejo de comunhão social.
Naquele tempo, quando gostavam de um show, os punks disparavam os extintores de incêndio com CO2, gás carbônico, que formava uma nuvem de fumaça no ar. O Aborto Elétrico, grupo que se desdobraria na Legião Urbana e no Capital Inicial, fez uma breve aparição. No intuito de demonstrar admiração, o poeta João Roberto Costa Júnior, que, mais tarde, seria chamado de Joãozinho da Vila, deflagrou o extintor de incêndio.
Só que não era de CO2; era de um pó branco, que se espalhou pelo espaço do Teatro Galpão. Instalou-se o caos, a peça foi interrompida, o Corpo de Bombeiros entrou em ação e ordenou a evacuação emergencial da sala. Uma nuvem branca flutuava no ar.
Todos nós tivemos de sair correndo do Galpão. Quando voltamos, o teatro estava tomado pelo pó branco, em uma cena de ficção científica distópica. Parecia que tudo estava coberto pela neve. O sopão desandou. O irreverente, anárquico e sentimental Jota Pingo ficou indignado e arrasado. A polêmica se desdobrou nas páginas dos jornais. Mas, no fim das contas, no meio do caos, depois de tanto tempo, a noite foi divertida.