Crônica da Cidade

por Severino Francisco severinofrancisco.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

A nave da 508 Sul

Sempre achei que alguém deveria escrever a história do Espaço Cultural da 508 Sul porque aquele território das artes é muito importante para a vida cultural da cidade. Tem história e ótimas histórias e, se não forem registradas, elas se perdem inapelavelmente. É uma casa experimental dos artistas. Tive o privilégio de viver muitos momentos memoráveis naquele espaço.

Por isso, fiquei muito feliz ao receber o livro 508 – A nave dos Insistencialistas, de Suyan de Mattos. Na verdade, ela aborda apenas a primeira fase da 508 Sul, de 1975, data da inauguração, até 1986, quando foi fechado em razão de problemas estruturais do prédio. Mesmo sob o limite desse recorte do tempo, o livro é precioso pela riqueza dos depoimentos de personagens que insuflaram alma naquele espaço.

Também peço licença para fazer um recorte inicial com o depoimento de João Antônio. Ele é ator, diretor, professor e gestor cultural, bate o escanteio e vai na área para cabecear. Graças à intuição, à perspicácia e a inteligência de João aquele espaço se tornou uma referência cultural da cidade.

João era assessor de teatro da Fundação Cultural e, ao perceber galpões na 508 vazios, sugeriu ao então diretor da Fundação Cultural, Rui Pereira, e ao secretário de Cultura, embaixador Wladimir Murtinho, fizessem um teatro para os grupos amadores. Os dois aprovaram, imediatamente, a proposta. Antes de seguir com a história, permitam-me um parêntese.

Assisti a muitas peças brasilienses no Teatro Galpão. De vez em quando, via alguém que chegava depois do início do espetáculo e se acomodava no chão. Era o secretário de Cultura Wladimir Murtinho. Ele estimulava, com entusiasmo, o teatro amador, pois considerava que era dali que surgiria uma arte experimental, uma arte que afirmasse Brasília: “Capital não pode somente refletir e repetir; capital tem de irradiar cultura”, dizia.

Mas voltemos ao fio da história do Galpão. João Antônio queria inaugurar o teatro com um espetáculo produzido com autores, diretores, atores e atrizes da cidade. Convidou Lais Aderne para dirigir a peça O homem que enganou o diabo e ainda pediu troco, do jornalista, ficcionista e dramaturgo Luiz Gutemberg. Era um cordel que se passava em um circo.

O arquiteto Mauro Biondi foi convidado para fazer a cenografia. O galpão era cinza e triste. Ele mandou pintar toda a fachada de verde. Tudo feito com quase zero de orçamento. Não fizeram um teatro; fizeram uma cenografia, que virou teatro, que virou centro cultural.

Os grandes atores e os grandes diretores não se forjam nas salas suntuosas. Eles se formam nos teatrinhos de fundo de quintal, nas oficinas transmutadas em palcos, nos galpões transformados em teatros.

Em meio a tantas notícias desalentadoras, mesmo fechado tanto tempo em razão de problemas na estrutura e descaso dos governantes, o Teatro Galpão foi reformado e renasceu como ponto de referência para a cultura na cidade. Fui ver O rinoceronte, dirigida pelo nosso bruxo emérito do teatro, Hugo Rodas. Pedi um ingresso à funcionária da bilheteria e ela me perguntou: “Para qual peça? Temos três em cartaz”.

Olhei para os lados e avistei três filas imensas de gente de todas as idades, mas, principalmente, de jovens. Espero que, depois da pandemia, o Teatro Galpão retome o ímpeto de antes da crise sanitária. Essa nave é muito relevante para a respiração cultural da cidade. Como dizia o ator Aluísio Batata, mentor do movimento insistencialista: é preciso insistir na vida.