Se antes da pandemia da covid-19 era possível para as mulheres contarem com redes de apoio femininas, o distanciamento social dificultou essa aproximação, ao menos no que diz respeito às formas tradicionais de encontro, ainda mais para aquelas em situação de vulnerabilidade. Essa constatação é abordada pela autora Cosette Castro — pós-doutora em psicologia clínica e cultura, psicanalista e pesquisadora de mídias digitais — no livro Cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas no mundo online: estimulando (novas) subjetividades em tempos de pandemia e violência, lançado em setembro pela editora luso-brasileira especializada em livros acadêmicos Ria Editorial. O trabalho é fruto das reflexões da autora, que fez pós-doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Desenvolvido em meio à pandemia e ao isolamento social, o projeto foi adaptado ao mundo virtual e, não por acaso, está disponível apenas em formato digital, gratuitamente.
Para elaborar a proposta, Cosette acompanhou a roda de cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), uma organização não governamental. A partir dos encontros, a pesquisadora, que era apoiadora do centro e prestava atendimentos sociais a vítimas de violência, elaborou questionários on-line para as participantes do grupo, dando destaque ao contexto tecnológico de cada uma. As perguntas englobaram quatro categorias: dispositivo materno; influência tecnológica; laços sociais e resistência. Posteriormente, foi feita a análise das respostas. As participantes do estudo tiveram a identidade resguardada.
Dificuldades
Cosette acredita ser essencial destacar que mulheres ativistas também sofrem com o excedente de demandas. A consciência do peso que recai sobre elas em meio aos papéis sociais não isenta as militantes de serem, elas também, alvo da carga extra. “Mulheres ativistas também trabalham em excesso — dentro de casa, profissionalmente e nos movimentos sociais — e precisam de espaços de autocuidado. Há muita sobrecarga física e mental”, refletiu a autora.
O trabalho de acompanhamento das rodas de conversa do CFEMEA começou antes mesmo da crise da covid-19 e quando Cosette vinha participando dos encontros com as ativistas. “Veio a pandemia e as rodas passaram a ser uma experiência virtual. Já era um projeto inédito no mundo presencial e foi inédito também na adaptação ao mundo on-line”, ressaltou a escritora. Para ela, as diferenças entre os formatos presencial e virtual apresentaram novas formas de “estar juntas mesmo longe.”
Em um país marcado por tantas desigualdades — inclusive a de gênero —, tratar de feridas emocionais sem resvalar em outras questões envolvidas é insuficiente. “Pude conhecer mais de perto a questão tecnológica em um país com tanta desigualdade. Algo que passava pela infraestrutura de rede, pelos tipos de aparelhos que as mulheres tinham e a própria questão do alfabetismo, do letramento digital”, apresentou Cosette, em referência ao momento em que os encontros passaram a ser on-line.
Apesar dos entraves sociais, a pesquisadora citou a amplitude da ação. “As rodas virtuais podem receber mulheres de todo o país ao mesmo tempo. E isso agrega experiências, novas histórias de vida individuais e coletivas. Nos eventos virtuais, se encontram mulheres de diferentes gerações e saberes”, apontou. “Precisamos de muitos espaços de acolhimento em tempos de pandemia, de luto individual e coletivo, de medo, insegurança social e econômica”, pontuou a autora, sem deixar de lado a importância de espaços terapêuticos para enfrentar momentos de dificuldades extremas, mas destacando o aspecto complementar do espaço. “Os encontros incentivam a saúde mental das mulheres de forma individual e também em grupo. Há muita amorosidade”, descreveu. “As mulheres se sentem ouvidas e respeitadas. Não há julgamentos, ninguém emite opiniões. No máximo, compartilham a própria experiência. É um espaço seguro e de confiança”, continuou a psicanalista.
Durante a elaboração do projeto, Cosette viveu na própria pele a necessidade do autocuidado em momentos de luto e dor. A pesquisadora perdeu a mãe, de quem era cuidadora, em janeiro. A genitora sofria de Alzheimer. “Fiz a pesquisa em meio a uma realidade muito particular, então o sentido de cuidado e autocuidado estavam muito presentes e fazem parte do estudo”, destacou Cosette.
Resultados
Apesar de o foco da pesquisa ser voltado às mulheres, a autora destacou que o cuidado não tem gênero. “É preciso considerar a constante violência e invisibilidade que as mulheres vivem desde a infância, mas toda criança pode ser incentivada a cuidar, ser solidária e praticar o autocuidado. Dessa forma, será possível viver em uma sociedade mais justa, onde as mulheres não estejam constantemente sobrecarregadas”, completou Cosette.
Os resultados do trabalho, segundo a autora, superaram as expectativas e mostraram que é possível, mesmo em um local perigoso para as mulheres como o Brasil, encontrar locais de cuidado. “Creio que esta experiência pode ser ampliada para outros espaços virtuais em todo o país”, concluiu a pesquisadora.
Leia
Cuidado e autocuidado entre mulheres ativistas no mundo online:
estimulando (novas) subjetividades em tempos de pandemia e violência,
168 páginas
Ria Editorial
Disponível gratuitamente