Crônica da Cidade

por Adson Boaventura adsonboaventura.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Cerveja perigosa

Já tomei cerveja com um assaltante. Acho que por medo ou por ter esperança que após o bate-papo ele pudesse repensar a vida. Também imaginei que após esse momento etílico ele pensaria duas vezes antes de me assaltar. Acompanhei grande parte da adolescência dele pelas CSBs de Taguatinga Sul. Pedia comida, dinheiro, cigarro... De vez em quando, dormia e passava o tempo perto do prédio onde eu morava. Era mais um jovem que cheirava cola para aliviar a fome. Cresceu e passou a cheirar cocaína para criar coragem antes dos assaltos.

Conversei com ele pela primeira vez enquanto eu observava o movimento da rua, sentado em um banco da quadra. Ele chegou e me pediu um cigarro. Agora não lembro o que conversamos naquela ocasião. Quando eu estava bem, lhe dava algum dinheiro, na esperança de deixá-lo longe de qualquer problema. Ele sumiu por uns cinco anos. Reapareceu enquanto eu tomava umas cervejas no boteco da rua. Não teve jeito, tive de convidá-lo para um copo.

“Saí da cadeia hoje. Estou na correria. Vou ver se levanto uma grana”, explicou, levando a mão no cabo de um revólver que estava na cintura, por baixo da camisa. Ficou preso por tentativa de latrocínio, quatro anos. Não tinha pai, nem mãe. Recebeu visitas apenas da namorada. Nesse período, ela acabou engravidando. Hoje, sua filha está com cinco meses, e ele não queria voltar para casa sem dinheiro. O que a menina iria comer? Lembrei que, para isso, ele poderia trabalhar. Mas ninguém estava muito disposto a empregar um ex-presidiário. Disse também para ele tentar algum programa do governo. Respondeu que daria muito trabalho, que demoraria muito para sair o dinheiro, e que seria muito pouco. Desisti de dar conselhos.

Ele já havia sido preso outras duas vezes. Uma delas foi por ter atirado três vezes em um cara que zombou de sua deficiência nas pernas. “O cara levou a mão no peito e tossiu sangue, hê-hê-hê”, lembrou, levando mais uma vez a mão na cintura. Ele estava “animado”, provavelmente assaltaria alguém antes de ir para casa. Poderia até ser preso naquela noite e nem sequer ver a filha. Mas acho que ele não pensava muito na hipótese de voltar para a cadeia.

Disse que entrou no mundo do crime por engano. Aos 12 anos, deixou as ruas para morar na casa de uma família. Ele conheceu inicialmente o filho do casal, ficou amigo do garoto e ganhou um lar por algum tempo. “Na época, eu tinha acabado de sofrer um acidente e não sabia o meu nome, nem lembrava dos meus pais. Daí, eu comecei a usar o nome do meu amigo, Rafael. Às vezes, dizia que era irmão dele”.

Mas tudo isso durou pouco tempo. Meses depois, quando já estava novamente nas ruas, foi abordado por policiais. Mais uma vez, disse que se chamava Rafael de tal. Os policiais passaram um rádio e minutos depois constataram que Rafael de tal era um homicida. “Paguei por um crime que não cometi”, dizia ele, enquanto bebia a cerveja.

Não acreditei naquela história. Paguei a conta e fui embora. Ele ainda me pediu alguns trocados para o ônibus. “Não ia assaltar alguém para conseguir dinheiro?”, pensei comigo. Se um dia ele não me reconhecer e resolver me assaltar, direi: “Ei cara, já tomamos uma cerveja”. Se é que ele ainda está vivo ou solto. Faz anos que sumiu da área.