Moro em um condomínio fronteiriço a uma mata cerrada. Eu ia escrever sobre outro assunto, mas ouço, ao fundo, o som rascante, metálico e estridente das cigarras. Gosto de me orientar pelos sinais da natureza. É prenúncio da chegada de chuva. Sempre associo o canto a palo seco das cigarras à poesia contundente, áspera e pontiaguda de João Cabral de Melo Neto.
O canto das cigarras parece uma orquestra sertaneja de música concreta ao ar livre, sob o sol devastador. É puro João Cabral: “Se diz a palo seco/o cante sem guitarra;/o cante sem; o cante;/o cante sem mais nada,/se diz a palo seco/a esse cante despido;/ao cante que se canta/sob o silêncio a pino.” Elas haviam sumido, mas resolveram voltar, talvez em homenagem tardia aos 100 anos de João Cabral: “O cante a palo seco/é o canto mais só;/é cantar em um silêncio/devassado pelo sol.”
Certa vez, nessa longa estrada da vida jornalística, fui fazer uma reportagem em Juazeiro, cidade encravada no sertão do Ceará. De repente, ouvi sair de dentro de um armazém o retinir do som estridente de algo atritado contra o que parecia ser uma bigorna. Era o pássaro araponga cantando em um cercado, o que me remeteu novamente a João Cabral: “A palo seco cantam/a bigorna e o martelo,/o ferro sobre a pedra/o ferro contra o ferro;/a palo seco canta/aquele outro ferreiro:/o pássaro araponga/que inventa o próprio ferro.”
Mas voltemos às cigarras. Elas vivem muito tempo embaixo da terra e, nesta época do ano, saem para cumprir o ciclo de reprodução. Os músicos da orquestra a palo seco são os machos, que fazem uma barulheira descomunal para atrair as fêmeas, conseguindo a façanha de propagar o som no silêncio aberto da cidade espacial.
O seu canto é, na verdade, um anticanto, um cante, pois o som não é emitido pela boca; é produzido pelas membranas do abdome. As cigarras são os músicos concretos e heavy metal do cerrado, e poderiam tocar no Teatro Nacional ou no Porão do Rock.
Com sua textura áspera e suas nervuras, elas são insetos híbridos de folha e casca de árvore com asas. O cante a palo seco das cigarras é torto, desgrenhado e crispado, e parece uma tradução musical das árvores do cerrado. A música a céu aberto das cigarras é a trilha sonora perfeita para uma cidade metafísica, espacial, moderna, futurista, mas plantada na natureza agreste. Ela produz um estranhamento, nos lança em outro espaço, nos mantêm em estado de alerta com as suas sirenes sob o sol a pino.
Durante a pandemia, ao me levantar, de manhã, encontrei o que me pareceu um inseto informe, inerte no chão da sala, misturado com a poeira. Dei um toque para ver se estava vivo, ele permaneceu imóvel. Peguei uma vassoura e o empurrei para a varanda, mas, de repente, o inseto não identificado emitiu um sonido estranho, mexeu as asas e, com dificuldade, alçou voo errático rumo ao cerrado. Sim, vocês adivinharam, era uma cigarra extraviada na sala e eu achei aquele voo um pequeno milagre.