Feminicídio, seguido de suicídio. Esta é a principal linha de investigação da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam II) para as mortes dos empresários Olívia Makoski, 47 anos, e Francisco de Assis Guembitzchi, 55, na madrugada de ontem. Olívia entra para a trágica estatística das mulheres assassinadas em razão de gênero e no contexto de violência doméstica no Distrito Federal. Somente este ano, foram 17 casos, quatro a mais do que no mesmo período de 2020.
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As informações preliminares colhidas pelos investigadores apontam que os filhos dos empresários, duas mulheres de 23 e 25 anos e um rapaz de 29, estavam em casa no momento do crime. De acordo com os relatos dos filhos, Francisco teria atirado duas vezes em Olívia e, em seguida, se matado com golpes de faca no peito e no pescoço. “Uma das filhas acordou com a irmã gritando ‘o que você fez com a minha mãe’ repetidas vezes e, quando chegou na varanda, encontrou a mãe morta e o pai andando de um lado para o outro do quintal se esfaqueando no peito e no pescoço”, afirmou o delegado plantonista da Deam II, Bruno Gomes.
Quando a reportagem chegou à residência da família, no Pôr do Sol, os corpos já haviam sido levados pelos profissionais do Instituto de Medicina Legal (IML). Os vizinhos preferiram não comentar sobre o crime ou a rotina da família. Dois homens conversavam no portão da casa. Um deles, Jason Clemente, se identificou como advogado da família e o outro disse ser sobrinho de Olívia. Ambos foram categóricos em dizer que nenhum membro da família comentaria sobre o corrido devido ao estado emocional de todos.
Em choque
O casal era dono do restaurante Querência do Sul, na QNP 30, em Ceilândia. Olívia, Francisco e os filhos estavam sempre no estabelecimento. Uma netinha do casal também circulava com frequência entre as mesas encantando os clientes. Neste domingo, pela primeira vez em anos, as portas do estabelecimento que funcionava todos os dias estavam fechadas. Durante aproximadamente 60 minutos em que a nossa equipe esteve no local, presenciou clientes chegando em busca de informações.
O crime chocou frequentadores e comerciantes da quadra, com quem Olívia e Francisco mantinham um bom relacionamento. Ninguém com quem o Correio conversou imaginava que o homem seria capaz de matar Olívia. Muito menos que eles enfrentavam uma crise no casamento. “Era um casal muito tranquilo. A mulher, super atenciosa. O homem também. Nunca presenciei grosseria entre eles”, relatou a servidora pública aposentada Luzia Elvira da Nóbrega, 57 anos. Cliente antiga, comprava a marmita diariamente no Querência do Sul.
No entanto, Olívia e Francisco viviam um momento complicado na relação, com relatos de idas e vindas. Segundo o que a polícia apurou até o momento, Francisco não aceitava o fim da união e estava inconformado com o fato de Olivia ter começado um relacionamento com outra pessoa. O casal iniciou o processo de separação há cerca de dois meses e, em 26 de setembro, a mulher denunciou o marido por perseguição.
Ao Correio, o delegado plantonista da Deam Bruno Gomes informou que a empresária havia tentado romper o casamento outras vezes, mas os dois acabavam reatando por insistência dele. Quando o denunciou este ano por perseguição, ela havia decidido dar um basta na relação. “Ela queria terminar o casamento e ele não aceitava. Ela começou um novo relacionamento e ele passou a persegui-la, para descobrir quem era a pessoa”, relatou o delegado plantonista da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Ceilândia (Deam II). Olívia pediu medidas protetivas de urgência e a Justiça concedeu. Francisco Guembitzchi deveria sair de casa e estava proibido de se aproximar ou fazer qualquer contato com ela.
Dono de uma farmácia a poucos metros do restaurante, Gustavo Ferreira, 36 anos, custou a acreditar que os vizinhos estavam mortos. “É um pessoal muito trabalhador. Para quem está de fora, parecia um casal tranquilo. Agora que ouvimos dizer que ele saía e voltava de casa. São muito queridos por aqui, não incomodavam ninguém. Foi um choque”, resumiu Gustavo.
Investigações
Policiais da Deam II reúnem elementos para traçar os últimos passos dos empresários e concluir o inquérito. “No local, foi encontrada uma arma (revólver calibre 38) e duas facas, possivelmente as usadas no crime. Mas só teremos a confirmação com o laudo pericial e, também, do IML”, pontuou delegada-chefe da unidade, Adriana Romana.
O corpo do casal foi encontrado do lado de fora da casa. O crime aconteceu por volta de 1h. O Corpo de Bombeiros tentou socorrer as vítimas, mas, quando chegou, elas estavam mortas. “Ela (Olívia) estava na área e ele um pouco mais afastado, como se fosse na parte do quintal”, detalha a delegada. Segundo informações, os filhos do casal estavam na residência com os pais, no entanto, devido ao abalo emocional, ainda não prestaram um depoimento detalhado.
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Machismo que mata
No Brasil, três mulheres são vítimas de feminicídio a cada 24 horas, e 30 são agredidas fisicamente no intervalo de um dia, como denuncia a Agência Patrícia Galvão. Os ataques físicos são apenas parte das perversidades praticadas por homens contra suas companheiras e namoradas. Há ainda as violências psicológica, moral, patrimonial e sexual.
Assistente social e pesquisadora do grupo Violes, da Universidade de Brasília (UnB), Ana Paula Penante reforça que é necessário agir sobre a cultura do machismo. “Com a Lei Maria da Penha, tivemos um avanço na obrigação do Estado de prevenir e dar encaminhamento para a violência da mulher, mas, enquanto sociedade, não há um convencimento de que o machismo mata. A população precisa entender que esta é uma pauta social”, afirma a especialista.
Ana Paula frisa, principalmente, a importância de uma intervenção na educação dos homens. “Precisamos trabalhar desde cedo esse debate, junto às comunidades e a população, sobre a cultura de violência. Inclusive se deve dialogar com os homens, que, enquanto cidadão, costumam ter esse comportamento agressivo, de querer resolver as situações de forma violenta e se sentir proprietário da mulher”, pontua.
Revolta
Os pais da estudante de direito Milena Cristina, 24, assassinada no apartamento dela, no último sábado, no Riacho Fundo, ficaram revoltados ao saber que o assassino confesso foi indiciado por homicídio culposo (sem a intenção de matar). “É lamentável que tenha sido assim”, disse o pai de Milena, Vanderlan Souza Conrado.
Enquanto se prepara para a cerimônia de despedida da filha, Vanderlan se agarra a possibilidade, de no decorrer das investigações, com o laudo do Instituto Médico Legal (IML), o indiciamento mudar para feminicídio.
O Correio apurou que o suspeito do crime foi recolhido para a Carceragem do Departamento de Polícia Especializada (DPE) e que a audiência de custódia deve acontecer hoje. Além disso, a partir desta semana, a investigação ficará sob a responsabilidade dos agentes da 29ª Delegacia de Polícia (Riacho Fundo), onde o crime ocorreu.
Onde pedir ajuda?
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência — Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República
Telefone: 180 (disque-denúncia)
Centro de Atendimento à Mulher (Ceam)
De segunda a sexta-feira, das 8h às 18h
Locais: 102 Sul (Estação do Metrô), Ceilândia, Planaltina
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam)
Entrequadra 204/205 Sul — Asa Sul
(61) 3207-6172
Disque 100 — Ministério dos Direitos Humanos
Programa de Prevenção à Violência Doméstica (Provid) da Polícia Militar
Telefones: (61) 3910-1349 /
(61) 3910-1350
Ciclo da violência
O termo ciclo da violência doméstica foi criado em 1979 pela psicóloga norte-americana Lenore Walker para identificar padrões abusivos em uma relação afetiva. O ciclo é composto por três fases que se repetem. A primeira se refere ao chamado “aumento de tensão”, quando o agressor demonstra irritação com assuntos irrelevantes, apresenta acessos de raiva, humilha, faz ameaças. Na maioria dos casos, a vítima se culpa pelo comportamento do agressor. A segunda fase é chamada de “ataque violento”, momento no qual o agressor perde o controle e materializa a tensão da primeira fase. Vale lembrar que as agressões não são apenas físicas ou verbais. Há violações psicológicas, morais, sexuais e patrimoniais. Por último, vem a fase chamada de “lua de mel”, quando o companheiro demonstra arrependimento, diz que o episódio não vai se repetir e busca reconciliação. O agressor torna-se carinhoso e altera algumas atitudes. O ciclo se repete até que o espaço de tempo entre uma agressão e outra se torne menor e a violência cada vez mais grave.
Não se nasce mulher, mas se morre por ser mulher
A paráfrase da célebre afirmação de Simone de Beauvoir, que dá título a este artigo, não é minha. Pertence à saudosa professora Lourdes Bandeira, uma das mais conceituadas estudiosas do tema da violência contra a mulher em nosso país, e que recentemente nos deixou.
Também não é a primeira vez que me aproprio desta lição para refletir sobre o quanto a violência de gênero que estupra, agride fisicamente, cerceia o direito de ir e vir, a liberdade de expressão e, por fim, mata, é um poder em si mesma. Uma parte do sistema patriarcal que visa garantir a custódia das mulheres mediante sua docilidade e obediência pelo medo.
Ser “bela, recatada e do lar”, assim como, propagar que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” são exemplos de um projeto misógino historicamente capitaneado por setores reacionários da sociedade e admitido pelo Estado que, por sua vez, garante a impunidade de perpetuadores dos mais diversos tipos de violência, das quais o feminicídio é o ápice.
Pesquisas têm apontado que o que conhecemos por feminicídio (de regra decorrentes de violência doméstica e familiar) é somente o cume do iceberg de misoginia, ou seja, de repulsa, de ódio ao feminino onde não estão computadas “todas” as mortes violentas de mulheres e de “todas” as mulheres — cis e trans.
Por isso, toda vez que nos deparamos com um novo caso de feminicídio que vem à luz, não o podemos encarar como um a mais na macabra estatística. Tampouco como mais um resultante do trágico final de um relacionamento abusivo. O que precisamos enxergar é que, ao nascermos como mulheres — repito, cis e trans — somos marcadas para morrer por esta razão. Mortes anunciadas em um país onde as demais opressões de raça e classe são também marcantes para a manutenção do discurso de setores retrógrados da sociedade e a continuidade da impunidade garantida pelo Estado.
Soraia Mendes, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, professora, advogada criminalista especialista em direitos das mulheres e autora de diversas obras sobre o tema