A violência de gênero avança como um grave problema no Distrito Federal, desafio para a sociedade civil e o poder público. De janeiro a agosto deste ano, 17 mulheres foram vítimas de feminicídio na capital do país — mesma quantidade de todo 2020. Na última semana, houve registro de novos casos ligados a esse tipo de crime. No domingo (3/10), Cilma da Cruz Galvão, 51 anos, foi assassinada a facadas, em Santa Maria, pelo namorado. Até o fechamento desta edição, o suspeito, Evanildo das Neves da Hora, 37, continuava foragido, e não havia informações sobre o velório da vítima. Na semana passada, uma mulher ligou para o 190 e pediu “uma pizza”. Os policiais militares entenderam se tratar de um pedido de socorro e enviaram uma equipe ao endereço da denunciante, que estava com o filho no colo, sob ameaça do companheiro. No dia seguinte, a Justiça liberou o acusado.
O balanço da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) referente aos casos de feminicídio registrados no primeiro semestre deste ano mostra que, das 17 vítimas do período, 47,1% morreram como Cilma, com golpes de arma branca (leia Raio-X). O chefe da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria), Alexander Traback, afirmou que a auxiliar de limpeza foi morta porque queria dar um fim à relação com Evanildo. “Ele a tinha ameaçado no dia anterior ao crime, porque ela queria terminar o relacionamento, e ele não aceitava”, detalhou o delegado.
Advogada criminalista, Hanna Gomes lembra que o feminicídio corresponde a um crime de ódio e que a morte costuma ser o ponto extremo de uma história marcada por diferentes tipos de violência — psicológica, moral, sexual, física e patrimonial. “É um agravante do homicídio caracterizado pela desvalorização da mulher pelo fato de ser mulher ou se identificar com esse gênero. Nesses casos, armas brancas como facas ou tesouras costumam ser mais acessíveis para os agressores”, destaca.
Hanna aborda a importância da denúncia, ainda que anônima, como forma de interromper o ciclo de violência e enfatiza que réus condenados por feminicídio consumado ou tentativa de cometer esse crime podem receber pena de 12 a 30 anos de prisão. No entanto, a advogada menciona uma questão legal que deve ser considerada pelo poder público: “O problema é que, até lá (publicação da sentença), o agressor permanece livre. E, se não houver uma boa política de proteção, ele (o acusado) pode voltar a atacar a vítima ou familiares dela. Para mudar isso, esbarramos na Constituição; por isso, é algo que deve ser discutido com outros órgãos. É preciso haver mais controle sobre as medidas protetivas”.
Ocorrências
Os dados mais recentes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) mostram que, de janeiro a julho, a Corte atendeu totalmente a 4,2 mil solicitações de medidas protetivas a vítimas de violência de gênero; parcialmente, foram 598. Para Cíntia Costa, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), a atenção a esses pedidos e ao julgamento dos acusados são componentes importantes no combate à prática. “No DF, temos um índice de condenação acima de 90%, com penas superiores a 20 anos se um homem cometeu feminicídio. É quase certo que o agressor será condenado e terá uma pena alta. Isso mostra que, aqui ao menos, vencemos a justificativa desse crime vinculado à emoção ou à defesa da honra”, avalia Cíntia.
A promotora frisa, contudo, que a maioria dos casos não chega ao Judiciário. No primeiro semestre deste ano, houve 7.869 ocorrências registradas nas delegacias do Distrito Federal. Os tipos mais recorrentes envolveram violência moral e psicológica (64,5% dos casos), seguidos de física (41,5%) e patrimonial (34,6%). Os dados são da SSP-DF. Geralmente, a ação inclui mais de um tipo, segundo a pasta.
Para Cíntia, além da orientação para a comunidade em relação à construção de um sistema que ampare as vítimas, é necessário trabalhar com os homens. “Eles são a origem dessa situação e devem ser conscientizados no trabalho, em grupos terapêuticos e em diversos locais de convivência desde a mais tenra idade. A violência contra a mulher faz mal para toda a família. A maior parte das agredidas é mãe, por exemplo. Por isso, a rede de apoio pública é muito importante. Assim como a formada por amigos, colegas, vizinhos, familiares”, pontua.
A magistrada Fabriziane Figueiredo Stellet Zapata, coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher do TJDFT, considera grave a normalização da violência contra elas. “A sociedade em geral se acostumou a um nível bárbaro disso e, de certa forma, vive-se uma apatia em relação ao fenômeno. Todos os dias, ouço mulheres e testemunhas contarem as maiores atrocidades que sofreram em relacionamentos abusivos, e os relatos vêm com uma naturalidade, como se tudo fosse normal. Ouço adolescentes tolhidas das liberdades; adultas privadas do próprio salário e obrigadas a manter relações sexuais contra a vontade; idosas quase escravizadas pelos filhos, parentes, companheiros, acostumadas a uma vida assim. Não podemos aceitar a violência contra a mulher como algo normal; temos de enfrentar o problema”, cobra a juíza.
Suporte
Chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) II, em Ceilândia, Adriana Romana salienta que uma das dificuldades da Polícia Civil e dos órgãos públicos é alcançar mulheres que vivem em situação de violência. “Algumas delas enfrentam isso durante anos e não conseguem procurar ajuda. Este é um grande desafio: mostrar a importância de denunciar, apontar que ela (a vítima) está em situação de risco real e que pode sofrer algo mais grave”, comenta a delegada.
Adriana observa que muitas vítimas chegam à delegacia receosas em relação ao que pode acontecer com o agressor e, por isso, defende uma mudança de mentalidade. Porém, ela reconhece não se tratar de um processo simples, pois situações de dependência financeira e emocional dificultam a tomada de decisão. “Trabalhar a autoestima das mulheres é importante, para deixarem essa cultura machista de lado”. A delegada também lembra que a Deam II oferece atendimento psicológico nas segundas e quartas-feiras, das 13h às 18h: “Não é uma terapia, mas um processo de acolhimento. E é preciso entender que todo mundo é responsável por esse enfrentamento. Não podemos continuar a aceitar esses comportamentos de violência”.
O combate às agressões contra as mulheres passa pelo trabalho desse tema desde a infância. Com base nessa premissa, nasceu o projeto Valorização das Mulheres e Combate ao Machismo nas Escolas. Por meio da iniciativa, alunos da rede pública de Sobradinho 1 e 2, além da Fercal e de Planaltina, recebem a visita de integrantes da Associação das Mulheres de Sobradinho II (AMS II). O trabalho, voltado a estudantes a partir dos 13 anos, é promovido pelas secretarias da Mulher e da Educação do Distrito Federal.
Ao todo, 18 colégios e 5 mil estudantes receberão visitas dos grupos. Ivonete Ribeiro dos Santos, coordenadora do projeto e assistente social na AMS II, conta que a ideia surgiu por meio de rodas de conversa. Atualmente, a associação atende mais de 390 mulheres em situação de vulnerabilidade ou vítimas de violência, com assistência social, advocatícia, psicológica e nutricional. “Nosso foco com essa iniciativa é usar a educação como instrumento de reflexão para a mudança da realidade machista de nossa sociedade, estimulando debates nas escolas e criando, com ações pedagógicas, uma nova perspectiva a respeito das mulheres”, detalha Ivonete.
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