Crônica da Cidade

Chuva de pétalas

Eu queria falar dos ipês, mas, a todo momento, o desejo é perturbado pela notícia de derrubada das árvores no Sudoeste, boiadas legislativas e das tentativas de golpes dos candidatos a Talibãs da taba. Não sei se vocês tiveram melhor sorte, mas, quanto a mim, a única notícia boa que consegui captar na Esplanada dos Ministérios é a da chegada dos ipês-rosas, dos ipês-amarelos e dos ipês-brancos.
De resto, só detecto descaso com a saúde, destruição de direitos e decisões contra o interesse público. Mas, com a simples presença, os ipês trazem um sinal de felicidade. Passei por lá de carro e os ipês esplendiam com todo o fulgor. É preciso armar-se de câmaras de celular, rapidamente, para registrar o flagrante, pois a beleza deles é fugaz. A floração só dura de 10 a 15 dias. É uma das experiências mais intensas de êxtase estético para os que habitam este pedaço.
Embora nome seja masculino, o ipê tem natureza feminina. Logo, as flores começam a cair com delicadeza. É como se a árvore se despisse, voluptuosamente, e deixasse um tapete floral na grama ressequida.
Clarice Lispector esteve em Brasília na década de 1970 e esnobou completamente as árvores da cidade. Escreveu que elas eram mirradinhas e pareciam ser de plástico. Eu gostaria que ela visitasse a cidade no tempo do estio para experimentar a visão do esplendor, que ela entreviu em outros aspectos de Brasília.
Quando vejo o fulgor dos ipês-amarelos sempre me lembro de um poema de Manoel de Barros: “Um girassol se apropriou de Deus/Foi em Van Gogh”.
É um sinal de pertencimento inalienável, pois o ipê é um patrimônio coletivo, basta abrir os olhos para se extasiar. Seria possível até constituir um calendário floral com eles. A fugacidade da beleza é uma de suas marcas distintivas. Parece que em um piscar de olhos, ela pode se perder.
Se ocorresse em outro período, o esplendor dos ipês, poderia passar despercebido, mas a floração ganha mais realce porque acontece no período da seca mais extrema, quando o planalto se crispa, a vegetação se eriça, se arma em riste e se impregna de uma natureza feroz de deserto.
Há duas semanas, durante uma caminhada pelo meu condomínio, assisti a uma cena fantástica: as flores de um ipê-amarelo de uns 10 metros de altura caiam lentamente na rua, como se fosse uma chuva de pétalas. Aproximei-me mais um pouco para me certificar que não estava sonhando. Mas era verdade. Eu apenas assistia a um pequeno milagre da natureza.
A árvore perdeu as flores, mas a visão do esplendor permanece viva em minhas retinas. A imagem dos ipês muda a nossa disposição, nem que seja por alguns segundos, mas com efeito que pode se estender dia inteiro. Mais do que nunca, nós precisamos também da beleza para a nossa sanidade mental. Talvez porque, como disse Sthendal, a beleza é uma promessa de felicidade.