Crônica da Cidade

Sonhos na pandemia

Saudades de quando eu sonhava apenas com minha infância ou qualquer coisa aleatória. Hoje, os sonhos são mais pandêmicos, digamos. Eu dentro de um elevador, cheio de gente sem máscara. As pessoas, desconhecidas, ficam em silêncio e não me deixam sair. Fico apreensivo.

Lembro de um truque que desenvolvi quando criança para sair de qualquer pesadelo: me fazer de vesgo para acordar. Sempre escapo, mas acordo pensando: podia ter enfrentado ou feito algo mais, pois sabia que era apenas um sonho e que não morreria. Levanto, tomo água e um remédio.

Torno a sonhar com pessoas sem máscaras, agora na rua. Não parece Brasília ou Taguatinga. Mais uma vez, fico apreensivo com a aglomeração desmascarada. Desmaio no sono e acordo na realidade. Está calor, mas estou sem forças para fazer qualquer coisa. Logo adormeço novamente.

Agora, estou na praia com meus pais. Tudo parece tão real e belo. As ondas do mar e as espumas. Eu mergulho e fico um tempo debaixo d’água. Lá, consigo respirar e vou nadando rumo ao fundo do mar. Encontro momentos de minha vida lá embaixo do oceano. Os peixes não estão usando máscaras, mas não me preocupo. Falo com cavalos marinhos e tubarões, tão amistosos quanto em algum filme de animação para crianças.

De repente estou em Aracaju, dentro do carro dos meus pais, indo para a praia. Vejo todo o trajeto que fazíamos no início dos 1990. Minha mãe abre uma bolsa, que eu imaginava ter alguns sanduíches, tira uma máscara e me oferece. Logo a cena corta para a vista de nossa varanda, no 12° andar. A cidade está bem diferente, mais arborizada. Praça Tobias Barreto, 466, edifício São José. Sonho também com Salvador, onde nasci, mas que pouco lembro. São ruas aleatórias, nenhum cartão-postal. Mas sei que é Salvador, de alguma forma.

De vez em quando, sonho com Sarajevo e Mostar, na Bósnia e Herzegovina, cidades que conheci já adulto. Detalhadamente, elas se fundem e ficam ainda mais belas, com suas pontes e seus cemitérios de muitas lápides brancas. Perco-me em suas pequenas ruas e admiro seus templos. Termino vislumbrando um rio e acabo deixando minha máscara cair nas águas cristalinas.

Não sonho muito com Brasília e pouco vejo os ipês, as entrequadras e as obras de Niemeyer. Vivencio mais Taguatinga, com seu o centro caótico e empoeirado, e Ceilândia, que adoro igualmente, assim como o Núcleo Bandeirante e suas pequenas avenidas, seus quiosques e a feira. Ao Plano, venho mais para trabalho.

Sonho com pessoas desconhecidas e ruas distantes, mas pouco com Brasília. Talvez porque a capital do país sempre será a cidade do futuro, inclusive em minha consciência. Eu, com 80 anos, morando em Sarajevo, Salvador, Aracaju ou em qualquer outro lugar (quem sabe ainda em Taguatinga), sonharei com esse cerrado da baixa umidade, das po*#@* dos ipês coloridos e dos exageros de Niemeyer, no bom sentindo, claro.

E espero que as pessoas sem máscaras dessa Brasília onírica não me assustem e não me façam acordar sem ar. Que nossa capital seja a cidade do futuro e do presente, e meus sonhos, o passado.