TRÂNSITO

Em oito meses, 908 motoristas foram autuados por infrações como rachas no DF

Condutores tornam-se ameaças ao transformarem carros em armas usadas nas disputas de velocidade nas vias públicas. Busca por adrenalina e diversão interrompe a vida de pedestres e outros motoristas não envolvidos na imprudência

Renata Nagashima
postado em 18/09/2021 06:00
Como normalmente os infratores negam os rachas, não é possível estimar o número de vidas perdidas -  (crédito: CBMDF/Divulgação)
Como normalmente os infratores negam os rachas, não é possível estimar o número de vidas perdidas - (crédito: CBMDF/Divulgação)

Popularmente conhecidas como “rachas ou pegas”, as corridas ilegais de veículos em vias públicas são frequentes no Distrito Federal, e suas consequências vão muito além das infrações de trânsito. De acordo com o Departamento de Trânsito do DF (Detran-DF), este ano, 908 motoristas foram autuados por disputas de velocidade, demonstração de manobras, exibição com arrancada brusca e derrapagem ou frenagem com deslizamento de pneus no trânsito da capital federal. A disputa é tipificada como infração e, muitas vezes, pode se transformar num crime, causando dor e sofrimento para pessoas que estavam alheias a irresponsabilidade dos condutores, como aconteceu com a aposentada Sheila Mendonça, 43, atropelada e morta em 2 de junho, em Taguatinga.

De acordo com o diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Detran, Glauber Peixoto, ao contrário do que muita gente imagina, os rachas não são apenas corridas pensadas com antecedência e organizadas em eventos ilegais. “Se dois veículos começam a competir para ver qual é o mais rápido, ainda que de forma espontânea, isso configura a prática”, explica.

O Código Brasileito de Trânsito, nos artigos 143, 144 e 145, prevê as condutas e penas para os motoristas que adotarem comportamentos que são enquadrados como prática de racha. A conduta é uma infração gravíssima, com valor de R$ 880,41, com penalidades que podem chegar até 10 vezes o valor-base da multa.

Além disso, as corridas ocasionam a suspensão do direito de dirigir, a apreensão do veículo e, nos casos de condenação, pena de até 10 anos de prisão se causarem mortes, como é o caso de Lucas Rodrigues, 23 anos, que atropelou e matou Sheila. Lucas e Alisson Herbert de Jesus Reis, motorista do outro veículo, participavam de um pega e foram indiciados pelos crimes de homicídio com dolo eventual, omissão de socorro e prática de racha. Caso sejam condenados, a pena vai de 10 a 20 anos de reclusão.

Apesar de o Detran/DF adotar ações específicas para coibir esse tipo de conduta, Brasília amarga a média mensal de 113 ocorrências por mês. Além disso, não é possível estimar o número de mortes causadas pelos rachas, porque quando são autuados, os responsáveis costumam negar a conduta. De acordo com Peixoto, o departamento vem mapeando os locais onde há maior concentração de casos e adotando estratégias de prevenção, como o monitoramento de redes sociais. “Fazemos essa observação com o intuito de identificar os organizadores e participantes de eventos de racha para fazer as abordagens de forma mais efetiva. Se mandarmos uma equipe só para determinado ponto, os outros vão fugir. Então, precisamos de uma abordagem mais abrangente em vários pontos”, explica.

Durante a época seca do ano, sem chuvas, as ocorrências são mais frequentes e as concentrações de eventos combinados ocorrem na região central de Brasília. Segundo Peixoto, em mais de 90% dos casos, os apostadores de racha são homens, entre 18 e 30 anos, e que estão alcoolizados.

Registros de infrações associadas a rachas, no Distrito Federal
Registros de infrações associadas a rachas, no Distrito Federal (foto: Editoria de Arte/CB)

Morte na faixa

A tradição de respeito à faixa de pedestres na capital federal não foi suficiente para manter Sheila Mendonça a salvo. Ela foi atropelada enquanto atravessava a sinalização com o marido e a filha, na QNL 13, em Taguatinga. Isso porque Lucas Rodrigues e Alisson Herbert brincavam com a velocidade em seus carros na via pública. Por volta de 0h30, os dois haviam saído de um bar, estavam alcoolizados e dirigiam a mais de 110km/h em uma via de 50 km/h. A aposentada foi atingida pelo carro de Lucas, arremessada a 40 metros e morreu na hora. O marido e a filha, de 18 anos, não se feriram.

Os jovens fugiram sem prestar socorro. Câmeras de segurança registraram a debandada e o momento em que Lucas e a namorada saíram de Uber após esconderem o veículo no prédio onde o rapaz mora. O carro foi apreendido horas após o crime, e os responsáveis pelo acidente se apresentaram na delegacia três dias depois. Em depoimento, eles negaram participação em racha. Lucas e Alisson estão soltos por serem réus primários e terem se apresentado espontaneamente. Como a perda da vida de Sheila foi um dolo eventual, ou seja, os motoristas assumiram o risco de causar a morte, mas não agiram deliberadamente com essa intenção, não foi solicitada a prisão preventiva. O Correio tentou contato com as defesas dos suspeitos, mas não obteve resposta.

Maria Antônia, 25 anos, é sobrinha da vítima e disse que a família está aliviada em saber que a justiça está sendo feita, mas só vão descansar quando os responsáveis estiverem presos. “Tirar a vida de uma pessoa inocente e viver em liberdade como se nada tivesse acontecido só dá mais motivos para ele sair, beber e fazer de novo com outras pessoas, assim como ele já vem fazendo. A dor que estamos sentindo não vai passar tão cedo. É difícil ver a filha dela, que acabou de completar 18 anos, chorar dia e noite sentindo a falta da mãe e traumatizada com a cena toda na cabeça”, lamentou.

No Brasil, as consequências do racha são apenas 7 pontos na CNH, multa no valor de R$ 293,47 e a suspensão do direito de dirigir por dois a oito meses. “Acredito que as penas deveriam ser maiores, até mesmo como uma forma de prevenção. Porque não é só a corrida, uma coisa leva à outra e, no final, alguém pode acabar morrendo, como aconteceu com minha tia”, disse Maria Antônia.

Mauro Aguiar, delegado da 17ª Delegacia de Polícia, responsável pelas investigações do caso, condena a prática de racha. “Essa é uma brincadeira ilícita entre dois motoristas, uma brincadeira de tremendo mau gosto e criminosa que alguns jovens ainda insistem em fazer por pura imprudência”, afirma.

Três perguntas para

HARTMUT GUNTHER, ESPECIALISTA EM PSICOLOGIA NO TRÂNSITO

O que leva alguém a fazer racha dentro da cidade, expondo a própria vida e a de terceiros ao risco de morte? Como o senhor explica esse tipo de comportamento?
É uma série de motivações que provocam esse comportamento. Há os encontros marcados, onde periodicamente as pessoas que gostam de corrida marcam essas reuniões para apostarem e há também os casos “espontâneos”, muitas vezes motivados pelo efeito do álcool. Acreditam que é comportamento “de macho”, para mostrar que um é maior que o outro e ostentar veículos. A grande maioria das ocorrências são praticadas por homens.

Para o senhor, por que, mesmo com os riscos, as pessoas insistem nessa prática?
De uma forma muito imprudente, estão em busca de adrenalina para suprir alguma coisa que está em falta na vida deles. Por exemplo, no caso da Sheila, o condutor estava a 120km/h em uma vida de 50 km/h, isso aumenta muito mais a adrenalina. Para ele, é bem mais interessante fazer em uma rua dessa do que no Eixão. Essa adrenalina é uma vertente do comportamento “macho” e adolescente, que se considera invulnerável. É aquele pensamento de “pode acontecer com os outros, mas comigo, não.”

O que pode ser feito para evitar essa prática?
Geralmente, o que aparece nos jornais são sinistros sérios, mas, na grande maioria dos casos, os praticantes de racha nem sequer são pegos pela polícia. E, enquanto não acontecer algo grave, vão continuar fazendo. Essas pessoas pensam “faço isso há anos, e nunca aconteceu nada”, mas basta apenas uma vez para que um acidente grave aconteça e uma vida seja tirada. Então, precisa haver mais fiscalização, essa infração precisa ser tratada como um crime sério não apenas depois que um acidente mais grave acontece. Precisa ter um trabalho preventivo com os jovens, que seja implantada uma fiscalização maior.

Memória

2020

Abril

Um homem ficou gravemente ferido, internado e em coma, por 17 dias, após disputa de “racha” em Águas Claras. De acordo com as investigações, o motorista de uma Land Rover/Evoque teria batido num Ford KA na Avenida das Araucárias, entre as ruas 24 e 25 Norte. A polícia confirmou que o motorista estava participando de disputa com um Porsche/Panamera e um Ford/Fusion. O laudo da perícia constatou que os veículos estavam em velocidade média acima de 140km/h, em uma via em que a velocidade máxima permitida era 50km/h.

Maio

Um motoqueiro morreu na Fercal após ser atingido por um grupo de motoqueiros que participava de um racha com manobras perigosas em via pública. Um condutor, de 24 anos, colidiu em outro, de 28 anos, que morreu. O envolvido havia consumido bebidas alcoólicas e não possuía carteira de habilitação. Segundo a polícia, o grupo costumava se reunir nos fins de semana para consumir álcool e substâncias ilícitas.

2017

Maio

Duas pessoas morreram vítimas de um racha. Elas estavam em um veículo que não participava da disputa, mas foi atingido na traseira e capotou. Os responsáveis disputavam a corrida na via L4 Sul, uma das principais vias do Plano Piloto de Brasília, e fugiram sem prestar socorro. As vítimas estavam no banco de trás do carro atingido. Elas morreram na hora, o motorista e um outro passageiro foram levados para o hospital.

Palavra de especialista

Wellington Matos, especialista em trânsito

Infelizmente, o racha ainda é algo frequente nas ruas de Brasília. É uma prática perigosa que se caracteriza por corridas rápidas, e aqui as vias são muito favoráveis por serem largas e retas. Há alguns anos achamos que o racha estava diminuindo, mas ainda é constante. Geralmente, os jovens saem de bares, festas, estão eufóricos e com os carros cada vez mais potentes, um olha para o outro e acelera. Além disso, está havendo pouca conscientização; a vida de uma pessoa está valendo muito pouco. Por exemplo, no caso do rapaz que atropelou a moça na faixa, ele seguiu, escondeu o carro, entrou no apartamento com a namorada, tranquilão. Você atropelar alguém, voltar desesperado e tentar salvar aquela vida seria o mínimo que o ser humano deveria fazer. Além disso, as pessoas cometem muitos erros no trânsito e fica por isso mesmo. Temos que preparar melhor os nossos condutores, que estão com carros mais potentes, bebendo e, depois, enfrentando leis brandas.

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