HABITAÇÃO

Grilagem: operação no DF abre debate sobre dificuldade para prevenir crime

Suspeitos têm passagens pela polícia por tráfico de drogas, porte de armas e homicídio. Crimes de apropriação indevida representam desafio para o poder público. Em 2020, terrenos ocupados ilegalmente corresponderam a 4,3% da área do DF

Problema antigo no Distrito Federal, a apropriação indevida de terras permanece como crime de difícil combate. Nessa sexta-feira (27/8), seis integrantes de uma quadrilha especializada em grilagem e extorsão foram presos, no âmbito de uma operação deflagrada pela 8ª Delegacia de Polícia (SIA). O grupo agia na Estrutural e em áreas do Assentamento 26 de Setembro. Além dos crimes relacionados a loteamentos, os detidos tinham envolvimento com tráfico de drogas, porte de arma, roubo e até assassinatos ou tentativas de homicídio.

A ação durou cerca de 16 horas. Todos os suspeitos moravam na Estrutural. Por meio de ameaça, eles expulsavam a população de casa e invadiam os lotes. Depois, vendiam os imóveis e terrenos para novas vítimas, que compravam as propriedades acreditando estar em áreas regularizadas. A quadrilha conseguia enganar os clientes porque falsificava documentos, como escrituras públicas e certidões de cessão de direitos. “(A ação) era sempre com ameaça. A partir de um crime em julho, avançamos na apuração e pedimos ao Judiciário nove mandados: quatro de prisão, além de cinco de busca e apreensão. Todos foram cumpridos hoje (sexta-feira)”, detalha a delegada Jane Klebia, chefe da 8ª DP.

Em 8 de julho, a quadrilha invadiu uma casa e expulsou a moradora do imóvel. Depois, vendeu a propriedade em uma rede social. Os compradores desembolsaram R$ 85 mil e dois veículos, ainda não recuperados pela polícia. Nos endereços visitados na operação de ontem, os investigadores encontraram cocaína, crack, computadores, telefones, R$ 2 mil em espécie e documentos. Dois integrantes da organização criminosa estão foragidos.

A ocupação irregular de terras persiste no DF desde, ao menos, o fim do século 19, segundo o advogado de direito urbanístico Fernando Carvalho Dantas. Os registros da ação de grileiros no Planalto Central remontam a um período em que a delimitação da unidade federativa não existia. O especialista argumenta que, atualmente, a penalidade para esse tipo de crime é relativamente baixa, o que acaba por incentivar a prática. “No passado aconteceu, e o Estado foi leniente. Mas, até hoje, não se tem estrutura para manter a fiscalização. A grilagem é um crime contra a ordem urbanística cuja penalidade é baixa em relação ao ganho (para quem comete). É um problema que recai sobre toda a sociedade e gera uma série de consequências imprevisíveis”, ressalta.

Para Marcelo Sayão, advogado na área de direito imobiliário, falta acompanhamento das autoridades e endurecimento das punições. “O grileiro não é penalizado ao fim do processo. Ele é preso preventivamente, mas ganha liberdade para responder”, pontua. Outra preocupação dele envolve crimes comumente associados à apropriação indevida de terrenos, como de organização criminosa, delitos ambientais e estelionato.

Uma das saídas, segundo Marcelo, passa pelo desenvolvimento de políticas públicas habitacionais, como formação de novos bairros ou construção de moradias populares. Ele lembra que a sociedade civil tem papel no combate à prática: “Antes de comprar qualquer imóvel, é preciso procurar um advogado para ter respaldo sobre a situação do local em questão, com tutela do Estado e da Justiça. Há muitas áreas em fase de regularização e, portanto, passíveis de compra e venda”, destaca.

Editoria de Arte/CB - Cinco regiões administrativas com mais operações contra grilagem, em 2020

Desobstrução

Dados da Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística (DF Legal) revelam que ocupações irregulares alcançaram 2,5 milhões de metros quadrados em 2020 — o que corresponde a 4,3% da área do Distrito Federal. No primeiro semestre deste ano, o total chegou a 500 mil m². De janeiro a julho, as ações de fiscalização resultaram em 3.022 autos de apreensão, embargo, infração, interdição e notificação, além de intimação demolitória ou descumprimento dela e ações fiscais. No mesmo período do ano passado, essa quantidade chegou a 8.769 (leia Ações em obras).

Quanto à desobstrução de construções e ocupações em áreas públicas ou de parcelamento irregular, houve 495 ações da DF Legal no primeiro semestre deste ano e 584 no mesmo período de 2020. Essas medidas incluem remoção de cercamento, de edificações de alvenaria ou madeira e daquelas não regularizáveis. A pasta atribuiu a queda nos resultados ao deslocamento das equipes para reforçar os trabalhos de fiscalização do cumprimento das medidas de proteção contra a covid-19.

Em 2020, Vicente Pires foi a região administrativa com mais ações de desobstrução (62), que envolveram obras irregulares e parcelamento de terras. Na sequência, aparecem Riacho Fundo 1 (49) e Gama (45). Neste ano, até junho, o Plano Piloto liderava o ranking, com 34 operações, seguido pelo Riacho Fundo 2 (23). Taguatinga e Vicente Pires dividem a terceira colocação (19). A secretaria atua por meio de monitoramento via satélite. Para denunciar, a população pode usar os canais Disque 162 ou ouvidoria.df.gov.br. A Polícia Civil também recebe informações, pelo telefone 197.

Ações em obras* 

Fiscalização
2020 — 8.769
2021 — 3.022

Desobstrução
2020 — 589
2021 — 495

Fonte: DF Legal

*Dados referentes ao período de janeiro a julho

Prejuízos ao meio ambiente

A Polícia Civil atua na coibição de invasões de terras por meio da Delegacia de Combate à Ocupação do Solo e aos Crimes contra a Ordem Urbanística e o Meio Ambiente (Dema). De janeiro a agosto deste ano, os agentes prenderam 25 pessoas em flagrante por parcelamento irregular do solo ou danos à natureza. Quando necessário, a unidade especializada atua em parceria com Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística (DF Legal).

Delegado da Dema, Alan Rosseto comenta que a prevenção à prática enfrenta dificuldades, devido às particularidades desse tipo de delito. “Existe atividade de monitoramento, mas, pela natureza do crime, por ser feito de forma bastante furtiva e oculta, a prevenção é muito difícil, até porque a delegacia atua em todo o DF. A prevenção eficaz, além de não ser o perfil da Polícia Civil, de maneira geral, é dificultada por isso. Via de regra, portanto, a atuação é mais repressiva”, comenta.

Presidente da Comissão de Direito Urbanístico e Regularização Fundiária da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), Juliana Santos Lucas considera que os problemas do desenvolvimento urbano no Brasil repercutem desde os tempos da colonização. Por isso, ela defende a separação da grilagem de questões fundiárias que surgiram em razão dos “processos incompletos de desapropriação e da indefinição dos limites de terras no DF”. “É uma questão complexa. As ocupações irregulares cresceram devido à deficiência do Estado na promoção de medidas efetivas de gestão e fiscalização, bem como à inexistência de uma política habitacional ampla e inclusiva, para além daquelas de interesses imediatistas e populistas”, avalia.

A falta de planejamento resulta, segundo ela, em um crescimento urbano desordenado. “Isso significa mais problemas à mobilidade urbana, à saúde, à segurança. Além do mais, temos as questões ambientais, como desmatamento, destruição de nascentes, morte de animais, assoreamentos e ocupações de locais de risco. Tudo isso acontece quando uma terra é grilada. Em áreas de baixa renda, principalmente, algumas de proteção ambiental, ainda há muitas ocupações. Esse é um problema crônico na capital federal”, completa.

Três perguntas para

Alan Rosseto, delegado da Dema

Há diferença entre grilagem de terras e parcelamento irregular?
O termo “grilagem” está mais vinculado à invasão de terras alheias para fins de apossamento e uso. O parcelamento se limita, em linhas gerais, à divisão do terreno para fins de edificação e posterior venda, tornando-as áreas urbanas. Ele exige uma série de procedimentos prévios, como autorizações e licenciamentos. Sem esses documentos ou com a desconformidade deles, haverá crime. Não são expressões sinônimas: alguém pode invadir e se apossar, agindo como grileiro, e parcelar depois.

Quais os impactos disso para a vida da população?
O parcelamento exige inúmeras autorizações e licenças justamente para que ocorram em áreas que possibilitem tal empreendimento, de forma que a realização (de obras) sem observar condições pode afetar diretamente o meio ambiente e, consequentemente, a qualidade de vida. O parcelamento pode ocorrer em área cujo terreno, por natureza, não permite edificações, o que pode acarretar problemas futuros de engenharia, arquitetura e de segurança para os moradores.

O comprador também pode ser responsabilizado?
Não pela compra em si, mas pela formalização e pelo registro do contrato de venda. A compra de lotes irregulares pode ensejar responsabilidades. Quem compra, além de incentivar financeiramente e fomentar atividade criminosa, corre risco de perder a propriedade. Há possibilidade de não haver regularização e de o local ser alvo de fiscalizações ou até de derrubadas por parte da administração pública, mesmo habitado. Além dos prejuízos financeiro, emocional e familiar, a ação colabora, muitas vezes, para o agravamento de problemas ambientais.

Colaborou Pedro Marra