Moradores do Lago Sul, Lago Norte e Park Way se mobilizam para derrubar a flexibilização contida no Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 69, de 2020, para mudanças na Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) nº 948, de 2019, que propõe a liberação de estabelecimentos de “uso comercial, prestação de serviços, institucional, industrial e residencial” em bairros residenciais. Um abaixo-assinado eletrônico contra as mudanças está com 2,4 mil assinaturas. A revisão da norma — em trâmite na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) — permite estabelecimentos como escolas, lojas e escritórios nas residências das 29 regiões administrativas contidas na legislação.
Um dos líderes comunitários que contesta as mudanças na Luos é o prefeito comunitário da Península Norte, Antônio Matoso. Segundo ele, a norma flexibiliza qualquer atividade profissional, sob a alegação de que muitos trabalhadores liberais já fazem isso. “Estão abrindo porteira para todo tipo de empreendimento, não apenas para o indivíduo constituir sua empresa e ter um escritório na sua casa. Isso muita gente já faz há muito tempo, e mais ainda durante a pandemia. Somos contrários a quaisquer ampliações de atividades econômicas nas residências”, afirma o morador do Lago Norte.
Matoso pede que o artigo 7º da Luos sobre o Controle de Vizinhança passe a valer somente para os bairros residenciais. “O desejo de toda comunidade é manter o projeto original de bairro, como foi concebido, o que fez o morador investir alto e se mudar para aquela região, exclusivamente residencial, com comércio local apenas em setores separados das casas. Escritórios de advocacia e empresas que já funcionavam quando da aprovação da Luos atual, em 2019. De uma hora para outra, o que estava dentro da legalidade pode se tornar insuportavelmente incômodo”, conclui.
Moradores
Vice-presidente do Conselho Comunitário do Lago Sul, Natanry Osório diz que recebeu imagens, no último dia 15, de onde foi construída uma oficina mecânica, na QI 5, em frente a um supermercado. Ela concorda com o uso de residências por moradores, profissionais liberais, desde que trabalhem onde residem. “Quando o morador chega em casa, a própria frente da entrada para a garagem está ocupada. Essa flexibilização descaracteriza os lagos Sul e Norte, criados como bairros residenciais do Plano Piloto, concebidos como de baixa densidade”, analisa Natanry.
Ex-administradora do Lago Sul de 2003 a 2007, ela cita o caso de um escritório de arquitetura que manteve a característica de residência. “Têm funcionários, mas não famílias dentro do imóvel. Isso é uma violação ao direito adquirido a quem comprou (uma casa) para morar com qualidade de vida”, protesta.
Presidente do Movimento Comunitário do Jardim Botânico (MCJB) — que ainda não participa do abaixo-assinado —, Maria Alice dos Santos Mota acredita que o artigo 7º da Luos deveria ser mantido, pois impõe que as atividades econômicas permitidas fiquem sujeitas à anuência prévia e escrita da vizinhança, que precisa estar de acordo com as mudanças.
Na visão dela, esse artigo atinge os demais bairros do mesmo modo. “O grande problema é a extinção do artigo 7º, porque existe um relatório do deputado Cláudio Abrantes, aprovado na CAF (Comissão de Assuntos Fundiários), que acolhe a ideia do Poder Executivo, que também revoga o artigo 6º e 84º na íntegra, e cria os condicionantes para o comércio”, explica Maria Alice.
O artigo 6º traz que as atividades permitidas para cada Unidade de Uso de Ocupação do Solo (UOS) estão especificadas por “uso comercial, prestação de serviços, institucional, industrial e residencial”, expõe a lei. O artigo 84 mostra que as atividades econômicas e auxiliares nos artigos 82 e 83 — sobre continuidade do funcionamento de estabelecimento — estão sujeitas ao controle da vizinhança.
Maria Alice explica que o Jardim Botânico tem apenas residencial unifamiliar, sem presença de atividade comercial. “No Jardim Botânico 3, por exemplo, estão sendo feitas creches irregulares sem licença pública. Há também um prédio residencial que foi transformado em uma igreja. Se retirarem o artigo 7º da Luos, vai acontecer a liberação geral. O nosso foco é a qualidade de vida. O esgoto que uma casa produz não é o mesmo de um prédio. Espero que tenham audiências públicas para a comunidade participar”, pede a moradora.
O presidente da Associação Comunitária do Park Way (AMPW), José Joffre Nascimento, cita uma falha da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal (Seduh), que não ouviu os moradores em audiência pública. “No PLC (nº 69 de 2020), fala que houve audiências públicas em que a gente foi convidado como entidade representativa, mas os moradores não têm conhecimento dessas audiências”, relata.
José conta que, em março de 2020, a Seduh encaminhou um documento a todas as administrações regionais do DF para que enviassem as colaborações. Entretanto, os administradores dessas regiões não avisaram às associações do Park Way, Jardim Botânico e lagos Sul e Norte. “É uma legislação que não escutou os moradores. É altamente danosa, porque o artigo 82 da Luos deu a oportunidade às empresas estabelecidas há dois anos da aplicação da lei de terem um ano para regularizar o funcionamento”, critica.
Anteriormente, em abril de 2019, a Associação de Moradores do Park Way enviou uma solicitação ao secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Matheus Oliveira, para que a Seduh produzisse as Diretrizes Urbanísticas Complementares do Park Way. O documento questionava onde iria ter comércio, escolas, áreas de lazer e equipamentos públicos, por exemplo. “Fizemos contato, mas não obtivemos resposta. Aqui no Park Way, há uma necessidade de calçadas. Esse local não está preparado para ter área comercial”, indaga o presidente da ACPW, José Joffre Nascimento.
O que diz a Seduh?
Em relação à manifestação dos moradores, a Seduh afirmou ao Correio, em nota, que “a minuta encaminhada à CLDF não propõe a alteração das características dos referidos setores habitacionais, os quais continuam tendo uso exclusivo residencial. Ou seja, não é prevista a autorização para atividade comercial ou prestação de serviço nos lotes exclusivamente residenciais”, diz um trecho.
A pasta explica que a proposta prevê apenas que profissionais liberais de algumas categorias possam trabalhar em suas residências, tais como arquitetos, contadores e programadores de tecnologia da informação, não sendo permitida qualquer alteração da edificação, que deve permanecer com características de residências. “Esta proposta é resultado de pleito formal apresentado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-DF) e Conselho Regional de Contabilidade (CRC-DF), sendo plenamente justificável e tecnicamente viável, tendo em vista não haver incomodidade”, comunica a Seduh.
Especialistas divergem
A promotora Laís Cerqueira, da Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística (Prourb), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), informa que recebeu reclamações de moradores em relação ao processo de elaboração do projeto de revisão da Luos, quando ele ainda estava no Executivo, mais precisamente na Seduh.
Segundo Laís Cerqueira, não foram realizadas as consultas públicas envolvendo a população diretamente interessada. “Um reclamante afirma que houve somente uma consulta pública para discussão de todo o texto alterado, ao passo que as consultas deveriam ser realizadas minimamente nas regiões administrativas impactadas pelas mudanças”, relata.
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF, Mônica Blanco não vê problema na autorização em escritórios de arquitetura funcionarem como prestação de serviço. “Sou a favor, porque é uma forma de democratizar as profissões e as pessoas terem mais acesso. Alguns arquitetos não têm condições de pagar aluguel para ter um escritório. Então, se eu pudesse ter o meu CNPJ na minha residência, por exemplo, economizo os meus custos e o meu gasto é muito menor. Não tem impacto no sistema viário, porque é uma pessoa que vem me visitar”, comenta.
Mônica se diz contra a autorização de estabelecimentos industriais, conforme prevê a Luos, pois geraria poluição ao meio ambiente e demais transtornos. “Sou radicalmente contra. Elas têm de ficar no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA) mesmo, pois geram barulho, fumaças e soltam resíduos. Até se forem próximas a residências, podem atrapalhar muito o bem-estar dos moradores”, acrescenta a presidente do CAU-DF.
Na visão do professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo, a Luos é uma matriz de negociação imobiliária. “É uma lei de cidadania zero, pois é um tabuleiro imobiliário que permite às pessoas que têm influência pressionarem o governador a tomar decisões que são de seus interesses pessoais. É uma Luos sem participação comunitária. É tirânica e extremamente envolvida com os interesses econômicos predominantes”, opina o especialista.
Frederico destaca que uma lei de uso do solo precisa ter parâmetros sobre impactos comerciais e de vizinhança. “As mudanças são deliberadas unilateralmente por grandes empresários que querem lucro imediato e não querem a menor interação com a vizinhança. Não têm o menor compromisso com o desenvolvimento humano do lugar onde eles investem. Com essa lei de uso do solo, as mudanças são muito prejudiciais para a comunidade, que tem de ser ouvida”, finaliza o professor da UnB.