Crônica da Cidade

O buteco e o velho

Ahhh, o buteco. Esse ambiente democrático, onde velhos solitários, jovens barulhentos, artistas, jornalistas, advogados, professores, empresários, aposentados, despachantes, vagabundos e vigaristas se encontram para celebrar ou lamentar a vida... Ou para encher o saco dos demais presentes. Para fechar negócios, resolver os problemas do Brasil e do mundo, dar risada de todos e de si, comer jiló, torresmo, pastel de bacalhau, caldo de quiabo e beber pinga envelhecida de Jaguariticibiritiba do Oeste, divisa com Nhenherironha do Norte, perto do rio Pacu-mirintinga.

A continuação das manchetes dos noticiários vive nas mesas do buteco: covid-19, vacinação, Lula, petê, Bolsonaro, eleição, STF, futebol e Afeganistão. Tudo entra em pauta. Há também o semestre na facul regado a litrões (universitários os adoram, é mais barato e vem mais cerveja), as desilusões amorosas do (a) amigo (a) e a história de traição do cara que está em pé (ao menos tentando se manter), rente ao balcão, relatada para o dono ou gerente do buteco, que, do outro lado da bancada, vira “psicólogo”.

Local de seres reais e mitológicos, como um senhor negro catador de latinhas. Manco, se apoia a uma bengala com a mão direita. Com a esquerda, segura uma sacola plástica com poucas latas vazias de cerveja e refrigerante. Sua feição varia entre o ranzinza e o meio ranzinza. Sempre responde a brincadeiras dos garçons com golpes de bengala.

Quando chega no bar, o homem do balcão serve de pronto um vinho chileno — de qualidade, por sinal — em copo plástico, pois ele não costuma demorar. Os três primeiros goles servem para degustar. Acende um cigarro de palha e vira num só trago o resto da bebida. Os garçons brincam com o velho, tentam fazer cócegas nele ou roubar as sacolas com latinhas. E o velho ameaça dar uma bengalada neles. Todos no bar dão risadas com a cena.

Sempre paga pelo vinho, não gosta de favores e não pede dinheiro a ninguém. Seres como ele alimentam o imaginário popular butequístico. Alguns dizem que ele tinha casa, família e dinheiro, que era descendente de escravos, que foi abandonado pela família ou que levou chifre (sempre tem chifre nas histórias). Sei que quando ele chega no buteco, todos sorriem por alguns minutos. Talvez seja um de seus poucos momentos de felicidade no dia, o vinho chileno no copo de plástico, a brincadeira dos garçons e a graça dos clientes. Às vezes, ele até esboça um sorriso.

Nesses dias, o vi saindo de um bar enquanto passava de carro rumo ao trabalho. Infelizmente, a pandemia restringiu a ida de muitos ao buteco. Não sei se restringiu o nosso senhor manco e ranzinza, que perambula pelas ruas e bares de Taguatinga há anos, sempre da mesma forma: bengala e sacola com latinhas vazias de cerveja nas mãos. Ser real e mitológico, ao menos para esse cronista. Ele poderia ser a representação de Omolu, Obaluaê, e nos curar de todo esse pesadelo da covid. Como não tenho certeza disso, preferi me vacinar (tomei a segunda dose ontem) e não aglomerar. Mas no buteco, de vez em quanto, eu vou.