Era pouco antes das 7h, quando José* (que preferiu manter a identidade preservada), 57 anos, saiu para comprar cigarro. De repente, avistou um carro, em alta velocidade, desgovernado. Em questão de segundos, o veículo invadiu uma parada de ônibus às margens da via, girou duas vezes e capotou fora da pista. A colisão, na BR-070, sentido Águas Lindas de Goiás, deixou dois mortos e sete feridos, na manhã de ontem, na altura de Ceilândia Norte.
Ao Correio, José relatou que havia três pessoas na parada de ônibus — dois rapazes e uma idosa. A mulher, sentada na beirada do assento, foi a primeira a ser atingida e morreu na hora. Um dos homens estava no meio do banco e foi arremessado. O terceiro pedestre, segundo José, chegou a se desviar um pouco, mas, ainda assim, foi atingido.
A cena do corpo de uma das vítimas sendo jogado para o alto e caindo na ribanceira, atrás do asfalto, é algo que ele não esquecerá. “Foi horrível, eu vi tudo, o carro passando debaixo da parada, batendo a parte da frente e capotando, duas vezes. Vi, também, o rapaz voando e caindo em uma vala. Na hora, fiquei sem entender como o corpo poderia ter saído de dentro do carro, mas depois percebi que era de um dos rapazes que estavam na parada. Eu não tive coragem, no momento que aconteceu, de ir lá perto ver, fui depois. Foi feio, não gosto nem de lembrar, é uma situação muito triste”, lamenta a testemunha.
Impactado pela tragédia, José presenciou o socorro chegando e voltou para casa. “Fico imaginando, as pessoas fizeram planos. A mulher poderia estar indo para a casa dos irmãos ou dos filhos. Estou, até agora, meio abalado, sem entender como isso pôde acontecer. Em poucos segundos! Nossa vida não vale nada, é um sopro. Os óculos quebrados da idosa ficou onde ela estava”, impressionou-se o homem.
Socorro
Além do Corpo de Bombeiros, que empregou oito viaturas e 27 militares no resgate, agentes da Superintendência da Polícia Rodoviária Federal (PRF-DF) estiveram no local. De acordo com o órgão, o condutor realizou o exame do bafômetro, que deu negativo para alcoolemia. O veículo transportava seis pessoas, número acima da capacidade permitida — três adultos, uma adolescente e duas crianças. O condutor é amigo dos demais passageiros, que são familiares. Eles voltavam da Bahia e estavam em direção a Águas Lindas (GO), onde moram. (veja ao lado — quem são as vítimas e infrações cometidas)
Cerca de sete horas após a colisão, a cena ao redor da parada, localizada próximo ao Condomínio Privê, ainda impressionava. O carro, segundo a PRF, teve perda total e foi retirado por um guincho particular.
Pedaços do veículo, como parte de uma das calotas e fragmentos da lataria e do parachoque, ficaram espalhados na pista e na área de cerrado onde o caro parou. Com o impacto, o banco no qual as vítimas esperavam pelo transporte rachou ao meio. Pedaços de concreto ficaram espalhados pelo chão. Na parede e ao redor da parada, marcas do óleo derramadas pelo veículo.
Entre janeiro e julho deste ano, aconteceram 77 acidentes fatais, 19 nas rodovias federais que cortam o Distrito Federal. Desses, três foram na BR-070, entre Ceilândia e Taguatinga. No mesmo período, 81 pessoas perderam a vida para a selvageria do trânsito na capital federal. Os dados estão no boletim divulgado pelo Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF).
Investigação
A tragédia de ontem é investigada pela Polícia Civil. O desafio dos agentes da 24ª Delegacia de Polícia (P Norte) é descobrir o que levou o condutor a perder o controle da direção, invadir a parada e capotar em seguida. Até o fechamento desta reportagem, o motorista, identificado pelo Corpo de Bombeiros apenas como Ildemar, 43 anos, não havia prestado depoimento. À reportagem, os agentes informaram que o homem ainda estava hospitalizado e que só será ouvido, após ser liberado pelos médicos.
Para a professora Michelle Andrade, coordenadora do programa de pós-graduação em transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), o poder público tem parte da culpa nos desastres recorrentes. “Claro que o motorista tem responsabilidade, porque o excesso de velocidade agravou a situação. Porém a estrutura precária foi decisiva para o desfecho trágico. Uma via cuja velocidade permitida é de 80 km/h não é local para paradas de ônibus. A rodovia deveria ter um recuo maior e proteções, para um carro não atingir pedestres, caso perca a direção. A saída de pista, como nesse caso, é uma ocorrência comum em rodovias, mas a consequência foi fruto do abrigo de pedestres à espera de ônibus em lugar indevido e da falta de proteção”, explicou.
O Correio entrou em contato com o Governo do Distrito Federal, por meio da Secretaria de Transporte e Mobilidade, e com a PRF, para saber da legislação a respeito de paradas de ônibus em rodovias federais e de alta velocidade. O GDF também foi questionado acerca da falta de recuo adequado para o embarque e desembarque de passageiros do transporte público. Não houve retorno até o fechamento desta edição.
“Foi horrível, eu vi tudo, o carro passando debaixo da parada, batendo a parte da frente e capotando, duas vezes. Vi, também, o rapaz voando e caindo em uma vala”
José, nome fictício da testemunha
» Vítimas
Veículo
» Ildemar, 43 anos, motorista, transportado ao Hospital Regional de Taguatinga (HRT) com dores na nuca.
» Adriana, 28 anos. Apresentava dores nas pernas e escoriações no rosto. Foi atendida no HRT.
» Evando, 26 anos: sofreu um corte na testa e foi levado ao Hospital Regional de
Ceilândia (HRC).
» Adolescente de 17 anos: queixou-se de dores no peito e na parte de cima da cabeça. Recebeu atendimento no HRT.
» Menino de 4 anos: foi levado ao HRT com hematomas na cabeça e escoriações no rosto.
» Menina de 6 anos: com edema na cabeça, foi transportada ao HRC.
Parada de ônibus
» Idosa de 65 anos: estava sentada na ponta do banco e foi a primeira a ser atingida. Morreu no local. O nome não foi divulgado.
» Homem sem idade nem identidade reveladas. Foi atingido pela parte da frente do carro e arremessado para trás da parada de ônibus. Morreu no local.
» Homem sem idade nem identidade reveladas. Foi transportado pelo Serviço Móvel de Urgência (Samu) ao HRC, com traumatismo craniano grave.
Infrações
» Circular em velocidade superior à máxima permitida para o local: infração de média a gravíssima, com multa de, até, R$ 880,41. O condutor pode perder a carteira de habilitação e o direito
de dirigir.
» Transitar com passageiros excedentes à lotação do veículo: infração gravíssima, com multa e remoção do carro.
» Transportar crianças sem assentos especiais: infração gravíssima, com multa de
R$ 293,47 e retenção do veículo, até que a irregularidade seja sanada.
Fonte: Código de Trânsito Brasileiro e professora Michelle Andrade