Saúde

Profissionais da enfermagem se tornam heróis anônimos durante a pandemia

Profissionais de saúde, que enfrentaram o medo e a fase mais aguda da crise sanitária provocada pela covid-19, dividem histórias e alegrias vividas nas filas de imunização no DF

Pelas mãos de técnicos e enfermeiros, a esperança de dias melhores é aplicada, diariamente, no Distrito Federal. Os mesmos olhos que viram pacientes intubados, familiares aflitos e equipes inteiras correndo contra o tempo para enfrentar um vírus letal e salvar vidas, hoje carregam a missão de imunizar a população brasiliense contra a covid-19.

Já são 1.784.763 pessoas vacinadas com a primeira dose na cidade. O número demonstra a capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde e dos seus profissionais. Pessoas anônimas, com histórias e particularidades, mas que têm em comum a missão de atuar no combate à maior crise sanitária e hospitalar vivida no Brasil.

Acúmulo de histórias

A enfermeira Camila Rangel Freire Rezende, 37 anos, está acostumada com seringas e agulhas. Ela está no ramo há 14 anos e, atualmente, trabalha na Unidade Básica de Saúde (UBS) 2, do Guará. Gaúcha, casada e mãe dos gêmeos de três anos Luísa e Matheus, ela conta que, antes do início da campanha de imunização, viveu dias de verdadeiro terror no centro de saúde.

“O primeiro atendimento é na atenção primária, então, a gente recebe os pacientes e, de acordo com a gravidade, encaminhamos aos hospitais ou não. Foi muito tenso, a gente tinha que enfrentar o medo de levar o vírus para casa todo dia. Trabalhamos porque fizemos um juramento e amamos a profissão. Estamos aqui por isso”, explica.

A chegada das doses da vacina contra a covid-19 a Brasília foi um momento de emoção e festa. O primeiro pensamento da enfermeira foi em seus filhos e em todas as pessoas que, assim como ela, perderam parentes. “Eu perdi colegas, amigos aqui no posto e, inclusive, fui contaminada. Para mim, é difícil deixar meus filhos em casa todo dia, mas, ao mesmo tempo, tenho que cumprir minha missão. Estudei para isso, passei em concurso para isso e venho todos os dias por eles e por tantos outros que precisam de nós”, completa.

A oportunidade de imunizar a população do Guará fez com que a gaúcha vivesse momentos especiais, como o dia em que se deparou com um conterrâneo. “Eu sou do interior do Rio Grande do Sul, minha cidade é São Gabriel. Quando estava vacinando os idosos, chegou um senhor com o sotaque de lá. Eu perguntei de onde ele era, e ele disse que era da cidade dos meus avós, Dom Pedrito. Quando falei que minha família era de lá e citei os nomes dos meus parentes, ele contou que trabalhou num banco junto com meu avô”, lembra Camila. Para a profissional de saúde, o momento foi especial. “Ele se emocionou muito, e eu também. Meu avô faleceu há dois anos, então me fez recordar muita coisa. Fotografamos o momento. Foi uma coincidência enorme da vida”, afirma.

Ato de amor

A farmacêutica residente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Bárbara de Medeiros Lima, 26, conta que sempre foi apaixonada por saúde e iniciou o período de residência junto com a pandemia, em março do ano passado. “Eu moro com meus pais e irmãos e, para eles, era um mix de sentimentos, porque era difícil morar com alguém que estava em hospital todos os dias, mas, ao mesmo tempo, era gratificante por saberem que eu estava ajudando nesse momento, batalhando na linha de frente”, diz.

A brasiliense conta que ver o início da imunização dos idosos foi um dos momentos mais marcantes de sua atuação profissional. “Eu achei muito bonito ver as pessoas trazendo os idosos para receberem a vacina. Eles ficaram bem emocionados, porque foram privados do convívio com os familiares”, ressalta. O momento fez com que Bárbara se lembrasse de sua avó. “De certa forma, nós estamos dando a oportunidade de que famílias voltem a se reunir também”, completa.

O trabalho com a imunização também deu a Bárbara a oportunidade de reencontrar amigos, quando as doses foram disponibilizadas para o público a partir de 25 anos, na última terça (10). “Eu pude ver a felicidade dos meus avós, meus pais e, agora, foi a vez dos meus irmãos, primos e amigos. Consegui encontrar gente que não via há muito tempo. Ver as pessoas que a gente ama podendo ter um brilho no olhar de volta, dá um gás, sabe? Além do alívio”, conta a jovem.

Dor da partida

Um consolo esteve entre os sentimentos do enfermeiro e gerente da UBS 2, do Guará, Paulo César de Azevedo, 53, desde o início da pandemia. Atuando com pacientes com covid-19, ele viveu dias de tensão e incerteza que, aos poucos, viram memórias que ele não pretende esquecer. Com a chegada da vacina, agora, ele é o responsável pela animação no centro de saúde e não deixa que o cansaço desanime o trabalho. Com uma caixa de som, um microfone e muita cantoria, o enfermeiro garante a alegria para quem será imunizado.

Para ele, que viu a partida de tantos pacientes, é a esperança que o ajuda a encarar os momentos difíceis. “Eu busco me renovar sempre”, ressalta. “A UBS tem pacientes que são amigos. Pessoas que, mesmo sem ter problema algum, fazem questão de vir aqui. Eles têm um vínculo muito forte. Tem paciente que a gente vai comer feijoada em suas casas. As UBSs aproximam muito a população do servidor. Nós sentimos muito quando vimos tantas mortes. Isso abalou muito a equipe”, explica.

Uma de suas memórias mais vívidas é a de um paciente que não acreditava na pandemia e morreu. “Ele era muito querido por nós mas, infelizmente, não acreditava na covid-19. Ele não utilizava máscara, se aglomerou muito. A gente atendeu ele em uma semana e estava super bem. Na segunda semana, ele retornou com a saturação em torno de 85%, com falta de ar. Solicitamos tomografia, ele estava com pneumonia. Mandamos para o hospital, acompanhamos o quadro dele e, infelizmente, veio a óbito”, recorda.

Para o gerente, isso deixa como ensinamento que devemos viver cada dia como se fosse o último. “Não dá para esperar para fazer ou falar algo. Se hoje é possível sorrir, brincar, abraçar, vá e faça. A pandemia levou muitos e rapidamente. Algumas vezes não conseguimos nos despedir”, acrescenta.

Meta dos 10 mil

Wellington Antonio da Silva, 55, é enfermeiro e gerente da UBS 5, de Taguatinga, há 37 anos. “Estou prestes a me aposentar, mas não tenho coragem. Enquanto tiver gente para vacinar, eu não aposento”, assevera. Essa determinação rendeu fama ao seu trabalho. A meta dele é chegar a 10 mil pessoas contra a covid-19 em um único dia. Por enquanto, ainda não conseguiu atingir o número. Até agora, o recorde do centro de saúde foi 7.260 pessoas. Mas ele não desanima e acredita que um dia chegará na meta, ainda mais com a ampliação da vacinação.

Wellington decidiu dedicar a vida aos cuidados em saúde após perder o irmão, em 1977, aos 13 anos, vítima de negligência médica no Hospital Regional de Taguatinga (HRT). Desde então, seu objetivo de vida é salvar cada vez mais pessoas e, durante a pandemia, ele redobrou o intento. “Quando vi meu irmão ser enterrado, a única coisa que pensava era em como isso estava errado. Tinha que existir uma forma de salvar mais pessoas. Agora, em fim de carreira, trabalho no HRT para mostrar que é possível sim salvar pessoas”, avalia.

Ao ser questionado sobre o início da vacinação, Wellington não conseguiu conter a emoção. “Não esqueço a alegria das pessoas na fila quando falei que iríamos iniciar a aplicação. Eu vi nos olhos delas a emoção, todos os idosos começaram a chorar. Porque ali viam a esperança, a possibilidade de voltar a ter uma vida”, recorda. Entretanto, nem todos os momentos foram apenas de felicidade. “Quando tínhamos a xepa (sobra de imunizantes que não foram aplicadas durante o dia no grupo determinado), às vezes, eram só duas aplicações, e víamos 10 pessoas na fila esperando pela chance de receber. Tudo por uma gota de vacina. Era difícil ver o choro, o desespero”, diz.

À medida que as novas doses foram chegando, a equipe colocava metas. “Isso começou a entusiasmar a gente. E agora surgiu o objetivo dos 10 mil. Não é por mim. É por todos que não tiveram chance, entende?”. “Cada profissional de saúde está batalhando, entrando para a história. Estamos em uma guerra. Não vamos receber medalhas, mas vamos dizer, lá na frente, que fomos nós que lutamos, com as armas que tínhamos, contra esse vírus”, ressalta.