Na manhã desta segunda-feira (9/8), o edifício da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), na quadra 701 Norte, foi palco de manifestação a favor da continuidade do Ambulatório LGBTQIA+ do Hospital Materno Infantil Dr. Antônio Lisboa (Hmib). Quatro dias após circulação de informações sobre possível fechamento, os homens e mulheres trans, homoafetivos e lésbicas atendidos pela unidade, além de médicos e apoiadores, protestaram pela regulamentação do local e pela continuidade dos serviços de saúde mental oferecidos nele.
A movimentação ocorreu mesmo após a pasta afirmar, na sexta-feira (6/8), que o Ambulatório permanecerá aberto — decisão divulgada após a repercussão da ameaça de desmonte do local. Os manifestantes acreditam que a falta de regulamentação da unidade, que não possui registro como serviço de atenção básica, enfraquece o funcionamento do local e a torna vulnerável a novas decisões do tipo.
O ambulatório funciona com este nome desde 2018, mas desde 2017 atende, de maneira gratuita, pessoas LGBTQIA+ com neurodiversidade, como ansiedade, autismo, transtorno delirante e outras condições.
Um homem trans presente no protesto, que não quis se identificar, afirma que foi ao protesto por acreditar que o serviço é essencial para a comunidade LGBTQIA+ neurodiversa. Apesar de ter sido atendido por um ano no Ambulatório Trans, do Hospital Dia, foi apenas na unidade do HMIB que recebeu o diagnóstico de autismo e o tratamento adequado que o proporcionou viver bem.
“Eu fui atendido por um ano no Ambulatório Trans, do Hospital Dia, mas minhas demandas não foram atendidas. Só tinha uma psiquiatra que não oferecia atendimento frequente e nem sabia se continuaria ali. Também não havia fonoaudiologia, essencial para tratar alteração de voz no caso de pessoas trans”, lembra.
Para ele, o atendimento especializado é o principal ponto para o sucesso dos pacientes do local. “No Ambulatório do HMIB há profissionais especializados em neuro-atípicos. Existe uma grande porcentagem de pessoas LGBTQIA+ com neurodiversidades atípicas (autistas) que possuem uma demanda extremamente específica e rara. No Ambulatório, eu tenho este tipo de atendimento”, diz. “O atendimento que tenho é fundamental para minha saúde mental. A doutora que me atende representa um apoio, uma base e uma estrutura que a gente não consegue sozinho”, complementa.
O homem diz que um dos motivos apresentados à equipe do Ambulatório, para o fechamento, é o de concentrar o atendimento psiquiátrico em gestantes e puérperas. Para ele, a ameaça de fechamento por este fator não faz sentido. “A demanda psiquiátrica dessas mulheres continua sem defasagem. Então, se elas continuam sendo atendidas, não há razão inteligentemente plausível para a hipótese dessa tentativa de um ‘remanejamento’ para um outro local ou outro especialista que não consegue atender a essas demandas tão específicas”, pontua.
“Nunca recebi tratamento tão especializado”, diz paciente
Saulo Oliveira, de 26 anos, homem trans e autista, soube do Ambulatório há apenas alguns meses e afirma que encontrou o que sempre buscou. “São poucos profissionais aqui no Distrito Federal que realmente abordam a questão do autismo, ainda mais relacionado com a questão de ser trans. É algo que eu só vejo no ambulatório da HMIB”, diz. “Eu já fui atendido por outros profissionais da rede pública e da privada e nenhum se compara”, pontua.
Ele afirma que, caso o local fosse fechado, “seria uma tristeza imensa”, além de se sentir “completamente sem apoio”. “O ambulatório hoje tem uma importância imensa na minha saúde mental. O meu atendimento psiquiátrico com uma pessoa que realmente entende as duas questões, e que realmente faz tudo para que a gente se sinta bem, como a médica que me atende, é único”, diz.
O ativista fez questão de estar presente no protesto para demonstrar apoio ao local. “O momento é bem difícil e vamos defender o que é nosso para que não tenha nenhum retrocesso. As pessoas precisam entender que apenas um local supre o que precisamos, nenhum outro local pode fazer igual. Tenho certeza que falo por mim e por todos atendidos lá.”
Retrocesso também é o termo escolhido por Rubi Martins, 33 anos, para falar sobre a ameaça de fechamento. A mulher trans foi diagnosticada com ansiedade e consegue conciliar sua rotina extensa de educadora social com tranquilidade pelo tratamento recebido no Ambulatório.
Ela lembra que não encontrava atendimento específico até ser encaminhada ao local pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) Diversidade. “Profissionais que sabem lidar com a diversidade nos ajudam bastante pois eles têm um olhar mais acolhedor e compreendem o que vivenciamos. É extremamente importante para nós, ao procurar qualquer profissional, que o tratamento ofertado seja conforme a identidade de gênero e orientação sexual”, explica.
Ela ressalta que o atendimento especializado é ainda mais relevante por ser gratuito. “É difícil termos atendimento gratuito, pelo SUS, devido à fila de espera. Se fôssemos para o Ambulatório Trans, como foi citado, a fila de espera é muito longa. E aí, quando temos atendimento, ele é ameaçado de acabar”. De acordo com fontes, o Ambulatório Trans do Hospital Dia, tem uma lista de espera de 470 pessoas.
Entenda o caso
Na última quinta-feira (5/8), pacientes e funcionários da unidade hospitalar que oferece atendimento psiquiátrico e outras especialidades para a comunidade LGBTQIA+ foram surpreendidos com uma possibilidade de fechamento.
De acordo com relatos ouvidos pelo Correio, o desejo de fechar a unidade seria da direção da Diretoria de Serviços de Saúde Mental (Dissam), núcleo da SES-DF, que entende que os cinco psiquiatras do local deveriam atender apenas gestantes e puérperas.
No entanto, a equipe médica tem conseguido atender, há três anos, o público materno e a comunidade LGBTQIA+. Nos últimos três anos, 300 pacientes foram recebidos pelo Ambulatório, entre homens e mulheres trans, panssexuais, homoafetivos e outros, com diversos tipos de neurodiversidade, como ansiedade, transtorno delirante e autismo. O atendimento ocorre às terças-feiras, no horário noturno, para não disputar espaço com o atendimento materno.
Outro ponto para o fechamento é de que o ambulatório se assemelha com o serviço oferecido pelo Ambulatório Trans, do Hospital Dia. No entanto, pacientes e funcionários relatam que a unidade do HMIB oferece maior agilidade e disponibilidade de tratamentos para a comunidade LGBTQIA+, além de especialistas em neurodiversidade e identidade de gênero.
O local também é palco para o ensino de alunos da Escola Superior de Ciências da Saúde (Escs) e serve como modelo de atendimento humanizado e focado no respeito à diversidade.
Após a repercussão do caso, a SES-DF anunciou a permanência do ambulatório. No entanto, a insegurança jurídica da falta de regulação preocupa os envolvidos. Juntos, os pacientes mobilizaram em protesto para conscientizar sobre a importância do local e conquistar a regulamentação.
A Secretaria de Saúde afirma, por sua vez, que a Subsecretaria de Atenção Integral à Saúde “vai normatizar e regulamentar o atendimento” do ambulatório “para que um maior número de pessoas possa ser atendida e tenha acesso ampliado aos serviços ambulatoriais”.
De acordo com a pasta, um grupo de trabalho está, inclusive, já em andamento para “a formulação da linha de cuidado ao público LGBTQIA+, que tem como proposta a identificação e organização de todos os serviços da Pasta que participam do cuidado a esse público”. O grupo será responsável por, além da organização dos serviços, implementar a regulação de consultas ambulatoriais, a qualificação das equipes para atendimento humanizado e gerenciamento de recursos humanos.