Jornal Correio Braziliense

ENTREVISTA

Documentário sobre Dona Ivone Lara celebra centenário da compositora e grande dama do samba

Obra, dirigida por Bruno Castro, conta a história da primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano

Yvone Lara da Costa, ex-enfermeira e assistente social, que pertenceu à equipe da doutora Nise da Silveira, no Serviço Nacional de Doenças Mentais, havia completado 55 anos quando entrou para a história da música popular brasileira, utilizando o nome artístico de Dona Ivone Lara. Em sua trajetória artística de 41 anos, teve atuação marcante ao lançar 16 discos e emplacar sucessos como Alguém me avisou, Acreditar, Minha verdade, Nasci pra sonhar e cantar, Sonho meu e Sorriso negro.

A primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano. Por essa e outras, a carioca, nascida no bairro de Oswaldo Cruz — vizinho de Madureira — na Zona Norte do Rio de Janeiro, recebeu o título de Grande dama do samba. Ao morrer em 16 de abril de 2018, deixou um rico legado. Parte dele foi reunido no Baú de Dona Ivone, documentário produzido e dirigido por Bruno Castro, cavaquinista que integrava a banda da artista, de quem se tornou parceiro e um dos melhores amigos.

Anteriormente, em abril, houve o lançamento de EP homônimo, que reuniu Dois corações abrindo a manhã (Dona Ivone Lara, Bruno Castro e Rildo Hora), interpretada por Maria Rita; Já é hora (Dona Ivone Lara. Bruno Castro e Serginho Procópio), na voz de Xande de Pilares; Quinze anos após o centenário (Dona Ivone Lara, Bruno Castro e Zé Luiz do Império); gravada em duo por Dudu Nobre e Pretinho da Serrinha; e Os espaços para sonhar (Dona Ivone Lara e Bruno Castro), com o Fundo de Quintal.

Complementam o repertório, Nas escritas da vida (Dona Ivone Lara e Bruno Castro), que em vida a cantora fez registro em duo com Gilberto Gil; Silêncio da passarada (Bruno Castro e Siraninho), por Dandara Mariana, cantora que deu vida a homenageada no musical, Dona Ivone Lara — Um sorriso negro, que esteve em cartaz, com grande sucesso, há dois anos, em teatros do Rio de Janeiro e São Paulo.

O documentário, com o qual é celebrado o centenário de Dona Ivone, traz gravações de apresentações e depoimentos dos artistas que participaram do projeto. O lançamento é do Music Box Brasil, canal de tevê por assinatura, dedicado à diversidade de segmentos da música popular brasileira e está disponível também em Claro HD/ Net, Claro Net e Vivo TV.

Dona Ivone Lara, que tinha uma legião de admiradores em Brasília, esteve aqui, fazendo shows em várias oportunidades. A primeira foi em 1978, como participante do Projeto Pixinguinha, ao lado do cantor Roberto Ribeiro, no Ginásio Claudio Coutinho. Voltaria depois para apresentações pelos projetos Gente do Samba (Feitiço Mineiro), Renata Jambeiro Convida (teatro Hotel Blue Tree) e Flores em vida (Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil).

Neste último, em abril de 2015, foi acompanhada pelo Adora Roda. Vocalista e pandeirista do grupo, que agora se chama 7 na Roda, Breno Alves lembra com saudade: “Dona Ivone era profissionalíssima e ao abrir o show Flores em vida, já estava com a saúde debilitada. Naquela noite, pudemos prestar uma justa homenagem à grande dama do samba, que deixou seu nome marcado para sempre na história da música e da cultura brasileira.”


» Entrevista / Bruno Castro

Quando se aproximou de Dona Ivone Lara e o que levou a isso?
Fui indicado pelo cavaquinista Mauricio Verde a fazer alguns trabalhos com Dona Ivone Lara, já que ele tinha agendas casadas com Altamiro Carrilho e João Nogueira em meados da década de 1990.

A relação que você tinha com ela durou quanto tempo e como era?
Relação de muita amizade e respeito que durou 20 anos, trabalhando muito em shows, viagens, palestras e composições. Representou para mim uma faculdade informal de vida e de música. Sou grato por essas páginas que Dona Ivone me ajudou a escrever. Ela era um ser humano diferenciado.

Que avaliação faz do legado da grande dama do samba?
Foi precursora sem ser panfletária. Agia de forma natural. O legado dela é incomensurável na área da música, da enfermagem e da assistência social. São figuras que aparecem de 100 em 100 anos.

O acervo dela passou a ser administrado por você?
Não. O acervo é administrado pela família Lara. Eu sou muito próximo e amigo de todo clã Lara. Tudo que faço discuto com eles e com a Miriam Souza, que era empresária dela e que também fez muito pela Dona Ivone. Tenho muito material, pois foram muitos anos trabalhando com Dona Ivone. Procuro retribuir, devolver ao público em geral todo aprendizado que tive.

É sua também a produção do documentário?
O documentário foi assinado por mim. Mistura clipes musicais com depoimentos relevantes dos artistas, familiares, músicos e equipe em geral. Um registro necessário do qual me orgulho de ter feito e de ter tido a colaboração de tantos amigos queridos que também amam a música e, em especial, o samba!

Com quem contou para reunir o material utilizado no Baú da Dona Ivone?
O material do Baú foi gravado agora em 2021 e tem imagens do meu acervo pessoal. Uma grande fonte de consulta e de referência bibliográfica são os livros de Kátia Santos, Mila Burns, Lucas Nobile, Zelia Duncan. Essas obras ajudaram a construir o roteiro juntamente com o realease elaborado pelo jornalista Leonardo Lichote.

O filme traz algo que os fãs ou o público não conheciam?
Certamente. Destaco os clipes de quatro obras inéditas que foram interpretadas por Xande de Pilares, Dudu Nobre e Pretinho, Dandara Mariana, Grupo Fundo de Quintal, além de imagens do meu acervo, que mostram momentos de criação em viagens e também na residência dela.

Na sua avaliação o que o Baú traz de mais valioso?
O Baú da continuidade ao trabalho dela como compositora e alimenta a construção histórica do samba, que é uma espinha dorsal da música popular brasileira. O samba é a voz do povo e a voz do povo tem uma força que nem mesmo ele sabe que tem.


» Depoimentos

“Dona Ivone Lara sempre foi e continua sendo inspiração para a mulher que compõe, para quem acredita no samba. Dona Ivone Lara, como já diz o samba, é uma joia rara”.

Xande de Pilares

“Dona. Ivone Lara foi uma revolucionária no mundo do samba e, muito antes de alguém falar em feminismo ou dos direitos da mulher, D. Ivone já lutava pelos seus direitos. Ela foi, com certeza, um dos ícones do nosso samba. Tinha talento, carisma e muito carinho com todos. A gente sente muita falta da Dona Ivone e é uma obrigação nossa manter sua obra sempre em alta para que as novas gerações possam ter contato com o que ela compôs e interpretou.”

Dudu Nobre

“Dona Ivone foi uma mulher extremamente consciente, corajosa e inteligente; porque ser mulher, negra e sambista, para a época, era uma exceção diante de uma sociedade machista e racista. Dona Ivone brilhantemente poetizou a vida, musicou a alegria e a dor e eternizou a voz feminina do samba. Hoje, eu canto porque Dona Ivone abriu os caminhos”.

Dandara Mariana

“Suspeito para falar, por ser neto, mas convicto que foi e é uma pessoa que me inspira em todos os sentidos. Tive o prazer de conviver, aprender e beber da fonte de uma das mulheres mais importantes do nosso país. Mulher, mãe, tia, avó e bisavó, que nunca deixou de lado a família; enfermeira e assistente social dedicada, que se prestou a ajudar com maestria os enfermos da saúde mental. Nada mais que nossa rainha do samba: cantava, dançava, tocava e era dona da melodia e inspiração para todos nós. Obrigado por tudo vó.”

André Lara