Evocação do meu pai
Lembro da fala do meu pai, também Severino Francisco, sertanejo pernambucano, como um rio corrente ou uma cachoeira, de fluência quase que ininterrupta. Ele foi uma figura quixotesca, fantástica, inverossímil. Parece ter saído diretamente de uma narrativa de cordel.
Veio para o Planalto Central com o dinheiro obtido com almanaques em versos, que escrevia, publicava e vendia. Cresceu no sertão bravio e primitivo. Era um nordestino de imaginação delirante. Lia revistas e livros de ciência, de onde assimilou uma consciência ecológica aguda.
Na década de 1950, nos tempos em que ainda era estudante ginasiano, ele já registrava a devastação das matas brasileiras em versos épicos e pungentes, que parecem escritos no século 21. Ouçamos sua voz, dramaticamente atual: “Primeiro uma machadada/e a árvore bela e copada/continua resistindo/depois, começa rangindo/feito cana na esteira/e na hora derradeira/ainda se ouve o estalo/a morte, a queda e o abalo/e adeus, mata brasileira”.
Em 1925, era um menino e assistiu, com um misto de pavor e fascínio, a chegada das chamadas volantes, os caminhões cheios de soldados para perseguir o banco do cangaceiro Lampião: “Eu era bem pequenino/quando vi um caminhão/apinhado de soldados/com os seus fuzis nas mãos/para enfrentar mato/espinho, cobra e carrapato/em busca de Lampião”.
Mais eis que a narrativa embica, abruptamente, para Brasília: “O soldado João Feitosa/que perseguiu Lampião/está vivo e mora em Brasília/é filho do meu sertão/me contou de viva voz/esta triste narração/lutou em Pau de Colher/é um herói sem galão/viu o sangue correr/de irmão para irmão/é um dos sobreviventes/daqueles cabras valentes/que andavam pelo sertão.”
Tenho uma suspeita de que meu pai pode ter sido, senão o primeiro, um dos primeiros cronistas de Brasília. E por que faço tal afirmação? Porque antes de ser inaugurado oCorreio Braziliense, em 21 de abril de 1960, meu pai já fazia crônicas em versos sobre múltiplos aspectos da cidade.
Viu Brasília nascer e registrou a aventura nos versos, em um tom também épico: “Eis a nova capital/riscada sob medida/veremos a sua plenitude/depois dela ser construída/lago por todos os lados/beleza e vastidão/espaço e arejamento/tem léguas de pavimento/ainda cheirando a sertão”.
No início da cidade, a moradia era um drama para as classes populares, que inventavam nomes bizarros para as suas ocupações. Meu pai veste a máscara dos candangos em versos jocosos e surreais: “Morei na Curva da Onça/e temendo ser assaltado/levei a minha mudança/para o Quintal do Delegado/De lá fui despejado/mudei-me para Sapolândia/hoje moro na Ceilândia/na Vila do Cachorro Sentado”.
Ao cortar o cabelo em uma barbearia de Paracatu, meu pai ouviu pelo rádio na Voz do Brasil a notícia da morte de Bernardo Sayão, a quem conhecia. Rapidamente, pegou lápis e papel e escreveu: “Brasília parou um dia/toda a sua construção/130 mil pessoas/em silêncio e oração/para levar o último adeus/ao engenheiro Bernardo Sayão”.
Quando Luiz Gonzaga morreu, meu pai o homenageou, numa paródia da letra de A morte do vaqueiro, mas com a mesma melodia. Os dois últimos versos sempre me comovem: “O Nordeste brasileiro/suspirou de emoção/quando vagou a notícia/morreu o rei do baião/nunca mais ouvirão/teu cantar meu irmão”.