O processo de regularização fundiária no Distrito Federal aumentou nos últimos anos. Entre 2019 e este mês, oito regiões administrativas tiveram 35 setores habitacionais legalizados. Nesses bairros, moram mais de 80,4 mil pessoas. A quantidade de decretos baixados com esse fim subiu 52% no período, em comparação ao verificado entre 2015 e 2018. Os dados foram antecipados ao Correio pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh). No entanto, a pasta não tem números consolidados de gestões anteriores.
A aprovação da regularização fundiária leva esperança aos moradores das cidades. Para a população, o processo antecede a adoção de medidas governamentais que melhorem a infraestrutura das áreas beneficiadas. No Setor Primavera, em Taguatinga, o decreto de regulamentação saiu em 22 de junho. A publicação do documento é a última fase antes dos procedimentos necessários para registro dos imóveis em cartório. A ocupação da região começou nos anos 1990. Hoje, a área de 60,5 hectares — equivalentes a 84 campos de futebol — tem 5,3 mil habitantes e pouco mais de 1 mil lotes.
Quando a reportagem esteve no bairro, o sol de quase meio-dia se refletia em várias poças d’água espalhadas pelas ruas da principal avenida do setor, ainda sem asfalto. O fluxo que saía de fossas descia pelas laterais das vias e se acumulava nos buracos. O nome Primavera contrastava com o clima seco do Distrito Federal, típico deste mês. Mas um detalhe da estação do ano que dá nome ao local e, de fato, combinava com os moradores dali era o calor: a população é receptiva e atenciosa.
Ações paliativas
Os habitantes do Setor Primavera vivem a expectativa de dias melhores, para compensar a poluição da fase de estiagem e a lama do período de precipitações. Morador da região há 14 anos, o aposentado e comerciante José de Arimateia, 74 anos, tem um bazar beneficente na principal rua do bairro. Ao falar sobre a regularização, ele não esconde a alegria. “Chego a me emocionar. Aqui é um excelente lugar. Só está ruim porque não temos acesso à infraestrutura. Quando chove, a água fica na altura da calçada. Arrasta gente, cachorro, carro, o que estiver pela frente. É perigoso. Quando não é isso, estamos engolindo poeira”, descreve José.
Carlos Magno Rabelo, 50, é líder comunitário do Setor Primavera desde 2013, onde mora há 25 anos. “A regularização era uma luta de quase duas décadas. É duro aguardar todos esses anos por elementos básicos”, destaca. Ele lembra que a população começou a ter abastecimento de energia elétrica só em 2015: “(A eletricidade) era muito precária. Não tínhamos iluminação pública e não dava para enxergar nada entre um poste e outro. Agora, é de qualidade. A água potável canalizada veio com esse serviço. Mas o problema do esgoto continua. As fossas não são suficientes, e o fluxo acaba transbordando”, lamenta.
O líder comunitário conta que a situação foi pior e que teve de adotar ações paliativas para facilitar a circulação, usando máquinas de terraplanagem para compactar e planificar o terreno. “Fica quase parecendo asfalto. Antes, era intransitável. Eu sempre esbarrei em dificuldades burocráticas (quando cobrava melhorias do poder público): ‘Não podemos fazer porque o setor não é regularizado’”, completa Carlos Magno, em referência às respostas que recebia dos órgãos competentes. “A partir da regularização, calculo que, em dois anos, no máximo, essas ruas todas estarão asfaltadas”, torce.
Aprovação
Entre 2015 e 2018, o Governo do Distrito Federal (GDF) publicou 23 decretos de regulamentação fundiária, que beneficiaram 134 mil pessoas. A área de 15,7 milhões de metros quadrados contemplados — equivalentes a cerca de 1,9 mil campos de futebol — incluía 25 mil lotes. “O processo tem dois momentos. O primeiro é de reconhecimento que uma área é passível de regularização, o que é feito por meio da lei, com inclusão (da região) no Plano Diretor de Ordenamento Territorial”, explica o chefe da Seduh, Mateus de Oliveira. “Depois, começa a etapa de aprovação do projeto em si”, acrescenta.
Para o secretário, quanto mais o Estado demora na aprovação das propostas, mais se agravam os danos urbanísticos e ambientais nas regiões irregulares. “A (garantia de uma) infraestrutura definitiva só é possível depois da aprovação dos projetos de regularização. O resultado não é só a escritura, mas, também, a drenagem de águas pluviais, (a oferta de um) sistema viário efetivo e completo, fornecimento de asfalto, energia elétrica e água, além da destinação e da construção de equipamentos públicos”, completa Mateus de Oliveira.
O responsável pela Seduh reconhece que o ideal é ter um movimento urbano planejado, com ações governamentais que evitem a instalação desordenada. “A regularização é necessária nos casos em que as ocupações se consolidaram, mas ela deve ser a exceção. A regra é a aprovação de bairros que nasceram planejados, com todos os estudos urbanísticos e ambientais (necessários)”, pontua. Para evitar a compra de imóveis em áreas ilegais, o chefe da pasta sugere conferir, de antemão, o site da secretaria para esse fim: portaldaregularizacao.seduh.df.gov.br. “Se a pessoa não encontrar o endereço, é porque ele não está em área de regulamentação. Pela plataforma, é possível saber se o processo está previsto e em qual etapa se encontra”, completa o secretário.
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Arrecadação comprometida
Outro setor com decreto de regularização recém-assinado é a Expansão da Vila São José, em Brazlândia, onde moram cerca de 19,8 mil pessoas, em 5,9 mil lotes. A publicação do texto que trata da legalização da área de 168 hectares — correspondentes a 235 campos de futebol — saiu em junho de 2019. No entanto, os moradores só começaram a receber as escrituras dos imóveis em maio último.
A ocupação no setor começou a crescer em 1995, com famílias de Brazlândia e de municípios goianos do Entorno, como Padre Bernardo e Águas Lindas. Ao longo do demorado processo de regularização, que começou em 2007, a administração regional da cidade removeu diversas instalações. Deodato Nunes, 49 anos, mora nessa área desde 1980 e não está no grupo que recebeu a escritura na leva mais recente de entregas. Ele acredita que terá o documento em mãos no próximo mês. “(A regulamentação) era algo de que precisávamos e uma demanda que cobrávamos das autoridades. Fizeram algumas obras de infraestrutura, mas faltam outras. Não dá para conseguir tudo da noite para o dia, mas estamos muito satisfeitos”, comemora o comerciante.
A expansão da Vila São José ainda tem problemas, como a falta frequente de água e luz. Contudo, desde janeiro, conta com asfalto, sistema de águas pluviais, serviço de limpeza e de coleta seletiva diária. Para o professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo, a regulamentação de lotes irregulares tem muitos aspectos positivos. “Obviamente, são extremamente importantes para as famílias, os negócios, a economia e a ordem urbana. Não se deve negar a regularização daquilo que, pela lei, pode ser concedido. É fundamental que o Estado garanta às pessoas a regularidade”, destaca o especialista.
Porém, o processo tem ocorrido de maneira “irresponsável” no DF, segundo Frederico. Ele calcula que, de 1988 a 2018, a renúncia fiscal que resultou da falta de planejamento ocupacional chegou a R$ 1,5 bilhão. “Cada regularização soma impactos ambientais, bem como sobre trânsito, transporte, energia elétrica, água, esgoto e saneamento, o que não tem sido computado. Em relação à parte fiscal, a renúncia fica em torno de R$ 300 mil por lote. Esse valor envolve o dinheiro que deveria ser pago: desde o projeto de regularização até os IPTUs que deixaram de ser recolhidos. O conjunto de dívidas cresce à medida que os locais começam a ser usados e a receber ligações elétricas, vias e asfaltamento. O investimento indireto aplicado para que essas habitações ilegais sejam viáveis é 10 vezes maior”, projeta o professor.
Palavra de especialista
Falta de planejamento
Pela legislação do Distrito Federal, o que define regiões passíveis de regularização fundiária é a inscrição como Áreas de Regularização de Interesse Social (Aris) e Áreas de Regularização de Interesse Específico (Arines). As primeiras são locais de baixa renda; e as Arines, condomínios de classe média. Todas são irregulares quanto às dimensões fundiária, de licenciamento ambiental e urbanística. Uma ação de regularização é contrária ao planejamento, que é preventivo. E essa falta de planejamento encarece a infraestrutura. É muito mais caro instalar redes de serviços públicos em áreas ocupadas. A regularização é curativa, uma medida de política urbana pós-ocupação. Ela é necessária quando há ausência de ação do Estado, incapaz de promover uma instalação ordenada. Pela necessidade de habitação, não resta alternativa senão ocupar áreas que, normalmente, são ambientalmente sensíveis — as quais o mercado imobiliário não quer ocupar —, de grande declividade e com solos frágeis. Há muita responsabilidade por parte do poder público, mas há, também, oportunismo do mercado, que enxerga a terra como cifrão e não vê o uso social da cidade, apenas uma mercadoria. A regularização fundiária envolve dois lados: um deles, o predominante, é o papel do poder público em reconhecer o direito das pessoas à moradia e à cidade — garantia constitucional. O outro lado é mercadológico. Histórica e tradicionalmente, o setor imobiliário e de terras no DF é voraz. Temos as mais altas especulações do Brasil, e isso tem a ver com a extrema desigualdade social e profunda segregação socioespacial.
Benny Schvarsberg, professor da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em sociologia urbana
De 2019 a 2021
35
Setores habitacionais regularizados
18,1 mil
Imóveis contemplados
80,4 mil
Moradores atendidos
10,870 milhões
Área total, em metros quadrados
Onde estão?
Os setores regularizados desde 2019 ficam em oito regiões administrativas
Sobradinho (12)
Planaltina (8)
Taguatinga (4)
Jardim Botânico (4)
Brazlândia (2)
Ceilândia (1)
Riacho Fundo 1 (1)
Recanto das Emas (1)