Tarcísio Meira na pele de Cristo
Todos os brasileiros com mais de 30 anos têm alguma memória sobre Tarcísio Meira. Para mim, a mais memorável da tevê é a interpretação de João, um dosIrmãos coragem. Não era só um galã; era um grande ator. Veio da escola do teatro. No entanto, eu queria falar de outra participação não menos memorável, embora menos acessível: a atuação de Tarcísio Meira no filmeA Idade da Terra, de Glauber Rocha.
Sob o impacto da morte do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, que havia rodado o filmeO evangelho segundo São Matheus, Glauber imaginou um filme que fosse uma missa bárbara sobre quatro Cristos renascidos no Terceiro Mundo para fazer a revolução do amor: o Kristo Negro, Kristo-Zumbi (Antonio Pitanga), o Kristo Ogum Lampião (Geraldo Del Rei), o Kristo Pescador (Jece Valadão) e o Kristo Conquistador Dom Sebastião (Tarcísio Meira).
Glauber declarou: “Não acredito no Cristo crucificado. Acredito no Cristo ressuscitado no êxtase do amor. A morte é uma invenção da direita”. Depois de apoiar a abertura política anunciada pelo general Ernesto Geisel, na virada final da década de 1970, Glauber foi atacado pela esquerda, considerado traidor e tachado de louco: “Só existe uma diferença entre eu e um louco. É que eu não sou louco”, contra-atacava Glauber.
ComA Idade da Terra, ele recusava um cinema narrativo, que contava uma história com começo, meio e fim. O filme não tinha um roteiro convencional. Glauber dava indicações, construía um texto básico e estimulava que os atores improvisassem.
Embora desigual,A Idade da Terraé um filme-manifesto de um cinema do futuro. Tarcísio Meira participa de dois momentos brilhantes. Em um deles, Tarcísio/Kristo Dom Sebastião Conquistador entra no meio da batucada da escola de samba União da Ilha do Governador na Marques de Sapucaí. Ele acompanha, atentamente, o frenesi do batuque, somente com os olhos e com o ríctus facial, por 10 minutos.
É como se Glauber quisesse representar a racionalidade do conquistador europeu em face do arrebatamento dionisíaco da cultura afro-brasileira: “O que será do amanhã/Responda quem puder/O que irá me acontecer/O meu destino será como Deus quiser”.
Corte para uma cena à beira-mar, numa praia degradada pela poluição, com as ondas batendo nas pedras e trazendo escombros de lixo. O barulho das ondas serve de fundo para o clamor apocalíptico de Tarcísio/Dom Sebastião ao lado de Ana Magalhães (Aurora Madalena), enquanto a câmera gira em movimento nervoso, transtornando a percepção do espaço: “As nossas estruturas estão abaladas, nossos alicerces foram destruídos. Houve uma implosão atômica no centro da terra. A qualquer momento seremos tragados pelo abismo. Nós estamos condenados. Esta é a cloaca do universo”.
Dom Sebastião faz uma declaração de amor a Aurora Madalena: “Você é a mulher que procurei no infinito, em todas as galáxias do universo”. Sem fazer conexão direta com a fala do Kristo Dom Sebastião, ela se exaspera e grita: “Mate Brahms! Mate Brahms!”. Brahms é o personagem que encarna o colonizador norte-americano, que Glauber chamaria de agente metafísico da Cia. Parece loucura, mas não é. Em vez de conectar sequências de cenas, Glauber faz uma montagem de cenas no mesmo plano.
Na sequência anterior, que corta para a de Tarcísio Meira, o Kristo Negro Zumbi, Antonio Pitanga, brada uma mensagem utópica para ninguém, no meio do cerrado, atrás do Palácio da Alvorada, mas que ecoa até nós agora: “Construiremos uma nova nação. Acorda, humanidade! Acorda, humanidade!”
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