A crise sanitária mundial potencializa a desigualdade de gênero e a vulnerabilidade feminina em qualquer faixa etária. Este é o cenário revelado pelo Correio por meio da série Mulheres na Pandemia. Na última reportagem do especial, vamos falar sobre o futuro. Um futuro em que mulheres tenham assegurado o direito básico de existir plenamente.
Os caminhos são muitos. Para romper o ciclo da violência, empoderar e alcançar a igualdade, é preciso acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte; nas esferas pública e privada, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos, entre outras medidas.
No DF, os desafios são imensos e alguns estão traçados nas metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — veja Para saber mais. A Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) informou, por meio de nota, que o enfrentamento ao feminicídio e à violência doméstica é prioridade da atual gestão.
Segundo a pasta, os números de agressão à mulher tiveram uma redução de 2,8% no primeiro semestre de 2021 em comparação ao ano anterior. De janeiro a julho de 2020, foram 9.262 casos, enquanto que, no mesmo período de 2021, foram contabilizadas 9.006 ocorrências.
Como medidas de enfrentamento, a SSP-DF ressaltou que foram ampliados os canais de denúncia e do atendimento às vítimas de violência doméstica. “Foi inaugurada uma nova delegacia da mulher, além da possibilidade de a vítima registrar o boletim de ocorrência de maneira on-line. Ademais, a Polícia Militar do DF tem aumentado a frequência das visitas no programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid)”, disse a pasta.
Ações preventivas
Especialista em Direitos Humanos e Violência Urbana, a professora da Universidade de Brasília (UnB) Lia Zanotta Machado acredita que a mudança começará a acontecer a partir do momento em que a Lei Maria da Penha for plenamente executada, e não apenas nos âmbitos jurídico, criminal ou penal. “Ela (a lei) tem propostas de ações preventivas a serem executadas pelo Executivo e instituições vinculadas à sociedade civil que, por exemplo, propõem grupos de reflexão para os homens agressores, que fazem também medidas protetivas de proteção à mulher”, explica Zanotta.
Além disso, o ciclo de violência será rompido quando houver uma profunda transformação da sociedade e ampliação. “Essas medidas de proteção à mulher, também, em grande parte, precisam de instituições, centros de acolhimento das vítimas, centro de reflexão para os homens. Essas ações são vitais para a sociedade”, ressalta.
Sufocadas pelas agressões
A comerciante Juliana*, 41 anos, moradora de Samambaia, passou por dois relacionamentos violentos e decidiu tomar uma atitude no último. Há dois anos, ela deixou o homem que praticava violência física e psicológica. “Sou uma mulher simples, mas que sempre sonhou em viver um grande amor na vida e sempre lutei por isso. Achava que isso era essencial na vida. Até que conheci uma pessoa. Começamos a namorar e, com 2 meses de namoro, ele foi morar comigo”, conta.
O relacionamento continuou mesmo com as agressões. Ela já chegou até mesmo a dormir na rua com medo de voltar para casa após uma briga com o companheiro. O casamento só acabou após Juliana descobrir uma traição. “Eu tive uma crise nervosa, ele saiu de casa, me deixou sozinha. Eu pirei completamente, a minha filha teve que chamar uma ambulância. Naquele momento, eu me vi morta, completamente sem forças para lutar”, relembra.
Depois de se separar, a comerciante procurou ajuda em grupos de apoio, amigos e familiares. “Fui tentando me trabalhar emocionalmente. Fui atrás de terapia, de ajuda e de exemplos. Eu lia muito sobre histórias de mulheres que foram abusadas e conseguiram passar por isso”, conta. “Isso me ensinou a ser uma mulher mais forte. Antigamente, eu deixava a porta aberta para qualquer pessoa entrar na minha vida”.
Subnotificação
Os números do feminicídio e da violência doméstica podem ser ainda maiores no Brasil. Em virtude das subnotificações, os números oficiais não refletem a realidade dos casos no país. Existem episódios de violência que não entram nas estatísticas oficiais. Isso porque muitas mulheres sofrem caladas as violências a que estão expostas. Outro problema encontrado é que muitos casos de feminicídio são registrados como homicídios no país.
A psicóloga Neusa Maria Batista trabalha ajudando mulheres vítimas de violência há mais de 20 anos. O Projeto Renascer, em Samambaia, atende pessoas de todo o Distrito Federal e também do restante do país. “A subnotificação atrapalha a criação de políticas públicas em defesa da mulher. A violência de gênero é ainda mais cruel para a vítima da periferia. Apesar de ocorrer em todas as classes sociais, enquanto uma mulher rica morre, há cinco vítimas da periferia. E a pobreza vai potencializar todos os tipos de violência”, aponta Neusa.
A especialista explica que, no passado, a violência contra a mulher era socialmente aceita. “Era normalizada. De alguma forma, a sociedade legitimava o poder do homem. Era como se ninguém percebesse o que visse. E, quando as pessoas viam, era um ‘direito do homem’”, ressalta.
Na pandemia, esse problema se potencializou novamente. “O número aumentou muito porque a violência é um escape para o homem. O homem fica dentro de casa e aquela mulher começa a incomodar porque ele quer encaixá-la em um padrão que ele deseja”, observa a psicóloga.
Para romper o ciclo da violência, essas mulheres enfrentaram uma mudança de paradigmas e dilemas pessoais. Esse é o caso da Mariana*, 44 anos, moradora de Arniqueiras. Durante o primeiro casamento, ela viveu todas as faces da violência: passou pelo abuso psicológico, físico e sexual.
À época, não tinha dimensão da violência que sofria e, até mesmo, se culpava pela situação. “Trazemos para nós toda a culpa e, ao mesmo tempo, lutamos para sair. É um mix de sentimentos”, aponta.
Mariana viveu o relacionamento abusivo durante 15 anos e teve 2 filhos com o agressor. “Eu era obrigada a ter relação sexual com ele. Quando não queria e dizia que não ia fazer, ele me agredia. Lembro que já pensei várias vezes em me matar para me livrar daquela situação, mas não conseguia por temor a Deus e por conta dos meus filhos”, relembra.
A vida com o ex-marido foi marcada por ciúmes e agressões. A mulher conta que resolveu deixar a casa em que os dois viviam por conta das sucessivas brigas e o medo de acontecer algo pior. “Quando ele viu que não ia voltar mesmo ele pedindo perdão, rasgou todas as minhas roupas e cortou e jogou pela janela todos os meus sapatos. Então, sai com a roupa do corpo mesmo e foi a melhor atitude que tomei em toda minha vida”, diz, aliviada.
Em um ato de sororidade, Mariana, agora, ajuda outras mulheres. “Participo do Projeto Renascer, que é contra violência doméstica e racismo, fazendo atendimentos psicológicos voluntários. Procuramos resgatar a identidade dessas mulheres e acolhemos toda sua dor sem julgamentos”, relata.
A advogada criminalista Hanna Gomes, especialista em direito da mulher, avalia que, a curto prazo, ações e políticas públicas de monitoramento dos agressores já identificados ou com medidas protetivas vigentes são formas efetivas de prevenir que a violência alcance os níveis mais altos, como o feminicídio, por exemplo.
No entanto, Gomes reconhece que o isolamento agravou o problema da violência doméstica. Para a especialista, a chave para a libertação da mulher está na educação, resgate da autoestima e independência financeira. “Aqui, falamos de educação, oportunidades no mercado de trabalho, acolhimento de mulheres que já foram vítimas, encaminhamentos às casas abrigos e atendimento multidisciplinar. São opções que podem entregar a própria mulher o controle sobre a tomada de decisão”, ressalta.
A criminalista explica que a violência contra a mulher passa por um ciclo. “Quando falamos sobre violência física, estamos enfrentando o pico das agressões, que quase sempre se manifestam com avisos-prévios (violências menores). Assim, a possibilidade de prisão preventiva do agressor em casos extremos e o patrulhamento da Polícia Militar e consequente acompanhamentos da vítima pelos programas policiais específicos são as medidas mais recentes para aprimorar a prevenção desses crimes”, destaca.
O feminicídio foi introduzido no Código Penal em 2015, pela Lei nº 13.104, e trouxe a figura penal específica do homicídio cometido contra a mulher, em razão da sua condição de gênero. É o assassinato de mulher por desprezo, discriminação ou aversão ao gênero feminino. Por isso, nem todo assassinato de mulher pode ser enquadrado como feminicídio. É um dos casos de crimes que vão à júri popular (Tribunal do Júri).
A produtora cultural Hellen Frida, 30 anos, é moradora da região administrativa de São Sebastião e atua em várias cidades da capital acolhendo e aconselhando mulheres vítimas de violência doméstica e relacionamentos abusivos. “Autocuidado entre mulheres, com doulagem, com rede de solidariedade e também com assessoria de gênero para instituições”, detalha sobre as funções.
Na avaliação de Hellen, a pandemia da covid-19 agravou ainda mais a violência contra a mulher. “É a partir do isolamento social que algumas violências foram detectadas - pelos vizinhos que escutam os gritos de socorro ou pelo número de feminicídios, mas as paredes de varias casas Brasil a dentro escondem violências diárias contra mulheres e crianças”, ressalta.
“Vivemos em uma sociedade machista, racista, capacitista e LGBTfóbica e essas violências são estruturais do patriarcado. O Brasil segue negligenciando, relativizando e silenciando as mulheres, atingido índices recordes de feminicídio e de denúncias de violências”, lamenta a produtora.
* Nomes fictícios para preservar as identidades das vítimas
*Estagiária sob a supervisão de Ana Maria Campos
Memória
15 anos da
Lei Maria da Penha
Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha completou 15 anos. A legislação existe como forma de criar mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. No total, estão previstos cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em relação à mulher
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em setembro de 2015. É composta por 17 objetivos e 169 metas para serem alcançados até 2030. São uma chamada universal para acabar com a pobreza, proteger o planeta e assegurar que todas as pessoas desfrutem de paz e igualdade.
No caso da violência contra a mulher, os ODS (ODS 5) visam garantir o fim da discriminação contra mulheres e meninas em todos os lugares. Dar à mulher direitos iguais aos recursos econômicos, como terra e propriedade, são metas vitais para a realização desse objetivo, além de garantir o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva.
Entre as principais metas estabelecidas pelos ODS estão: eliminar todas as formas de discriminação de gênero, nas suas intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade, em especial para as meninas e mulheres do campo, da floresta, das águas e das periferias urbanas.
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Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em relação à mulher
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em setembro de 2015. É composta por 17 objetivos e 169 metas para serem alcançados até 2030. São uma chamada universal para acabar com a pobreza, proteger o planeta e assegurar que todas as pessoas desfrutem de paz e igualdade.
No caso da violência contra a mulher, os ODS (ODS 5) visam garantir o fim da discriminação contra mulheres e meninas em todos os lugares. Dar à mulher direitos iguais aos recursos econômicos, como terra e propriedade, são metas vitais para a realização desse objetivo, além de garantir o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva.
Entre as principais metas estabelecidas pelos ODS estão: eliminar todas as formas de discriminação de gênero, nas suas intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade, em especial para as meninas e mulheres do campo, da floresta, das águas e das periferias urbanas.