Administrar as atividades profissionais e pessoais tem sido um grande desafio para as mulheres durante a pandemia. Se, antes, muitas se desdobravam em jornadas de trabalho dentro e fora de casa, a presença da covid-19 impactou diretamente a saúde física e mental da população feminina. O fechamento das escolas e a impossibilidade de manter redes de apoio foram os primeiros efeitos sentidos por elas com a necessidade do distanciamento social imposta pela doença. Na segunda matéria da série de reportagens especiais, o Correio trata desse tema.
Para a pesquisadora de gênero e mercado de trabalho Tânia Fontenele, a situação de desigualdade entre homens e mulheres foi agravada no que se refere ao acúmulo de tarefas. Isso porque, mesmo quando não exercem a maternidade, quase sempre são elas as responsáveis pelos cuidados com os mais frágeis da família — idosos, doentes. “Não se considera a atividade doméstica como trabalho. Não há um reconhecimento das mulheres dentro de casa, mas são elas que se responsabilizam por tudo e todos, historicamente”, observa Tânia. A pesquisadora acrescenta que a pandemia trouxe mais estresse para elas. “As atribuições aumentaram significativamente. Muitas dependiam de creches, escolas ou de outras mulheres para cuidar da casa e perderam isso.”
Um estudo de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que o gênero feminino dedica quase o dobro de tempo para os cuidados com outras pessoas ou afazeres domésticos. São 21,4 horas semanais delas, contra 11 horas exercidas pela população masculina.
A Sempreviva Organização Feminista com a empresa social Gênero e Número promoveram, em 2020, o estudo Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. De acordo com os dados coletados, metade das brasileiras teve de cuidar de alguém durante a pandemia. A pesquisa ouviu 2.641 cidadãs e constatou que 80% das entrevistadas estão cuidam de familiares. Outro dado revelado é quanto ao trabalho remunerado. Desde o início da crise sanitária, 41% delas seguiram na quarentena com a manutenção do salário, mas relatando aumento das atividades em casa. Um peso para 65,4% das ouvidas, que viram a mudança como um dificultador para a realização profissional.
Trabalho presencial
A emergência sanitária exigiu a reconfiguração das relações de trabalho. Enquanto algumas pessoas precisaram lidar com o risco de contrair covid-19 para trabalhar presencialmente, outras puderam migrar para home office. Um levantamento do IBGE aponta que 56,1% dos trabalhadores que puderam ficar em casa eram mulheres.
A vigilante Maura Alves, 51 anos, foi uma das que permaneceu com as atividades presenciais. “Na minha profissão, como é serviço essencial, não parei. Mesmo com medo de contrair alguma coisa, continuei trabalhando.” Com o marido afastado do emprego, a única renda da família é o salário dela.
“Trabalhar é uma necessidade, não tinha condição. Minhas duas netas, nesse período, ficaram comigo, pois minha filha é mãe solo e estava em home office.” Depois do plantão de 12 horas, Maura iniciava um novo turno. “Estava sendo vigilante, dona de casa e professora das minhas netas.”
Para preservar a saúde da família, ela segue um protocolo rígido ao chegar em casa. “Tiro a roupa e os sapatos do lado de fora, alguém me recebe com a toalha e vou direto para o banho”, conta. Trabalhando no setor de garagens da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Maura tem contato com pessoas de todo o país. “Sempre me deparo com alguém sem máscara. É uma preocupação.” Segundo o Sindicato dos Vigilantes do DF, 2 mil profissionais se infectaram pelo coronavírus e 60 morreram.
Outro ambiente de exposição era no transporte. O trajeto de mais de uma hora entre Brazlândia e Asa Norte era feito de carona. “Tenho medo de ficar perto, mesmo de máscara. A opção é isso ou o ônibus”, diz Maura. “Mas mexe com meu psicológico. Fico abalada, dá vontade de chorar, é muita coisa”, confessa.
Crianças em casa
No Distrito Federal, os colégios particulares retomaram as atividades nas escolas em setembro. Na rede pública, a volta está marcada para 5 de agosto, em escalas, depois da vacinação dos profissionais de educação. Enquanto isso, 450 mil estudantes estavam em casa, com aulas remotas, o que representou dificuldades não só para os professores mas, também, para os responsáveis pelos alunos.
A coordenadora do curso de psicologia do Iesb Danielle Sousa analisa que o contexto da pandemia transformou o espaço da casa em espaço de trabalho, e as duas atividades. “Tem uma sobrecarga, não só em nível material, mas, também, psíquico e emocional”, destaca. Assim, ela elenca a rede de apoio como um dos instrumentos essenciais para que as mulheres consigam passar pela pandemia. “Isso vai ter um recorte social, com certeza. Aquelas que dispõem de rede de apoio ou creches vão conseguir amortizar essas consequências para a saúde mental.”
O desafio é ainda maior para as mães solo, como Maria Clara Xavier, 33. Ela é professora da rede pública e, além de atender os alunos da alfabetização, precisava acompanhar os dois filhos — de 5 e 10 anos — nas aulas remotas. Por vezes, as atividades das crianças coincidiam com os atendimentos que ela prestava. “Teve esse choque. Tivemos de nos adaptar.” A rotina extenuante ainda sofre o acréscimo das tarefas domésticas e dos cuidados rotineiros com os filhos. “Tem de fazer almoço, organizar a cozinha, continuar o trabalho à tarde”, enumera.
“Minha produtividade caiu, tive uma sobrecarga. Os dois ficaram quase seis meses sem ir para a casa do pai. Antes, quando saíam, dava uma aliviada, mas ficou tudo somente para mim”, conta. A mãe e a irmã de Maria Clara dividem o lote com ela, e foi essa a rede de apoio que a ajudou a atravessar a pandemia com as crianças. “Estar junto da família fez toda a diferença.”
Mesmo com a família, ela conta que ficou abalada. “Tínha medo de sair de casa. Evitamos ao máximo ter contato. Precisei respirar fundo algumas vezes. Sem suporte, como você dá conta?”, indaga.
Responsabilidade sobre o bem estar
A sobreposição de tarefas para as mulheres leva a um aumento de ansiedade e estresse, que acaba por comprometer a saúde mental delas. “A pandemia colocou uma lente de aumento em problemas sociais que a gente tinha”, pondera a psicóloga Larissa Polejack, da Universidade de Brasília (UnB). Ela ressalta que, além das demandas da casa, da família e do trabalho, as perdas para a covid-19 também pesaram sobre o emocional das mulheres de modo mais intenso. “Recai sobre elas essa preocupação com o bem-estar. Conforme os lutos aconteciam, o medo de perder um ente querido trazia mais estresse para quem lidava com a perda dos pais, do marido ou dos filhos”.
Com esse cenário, Polejack destaca que a maior parte dos relatos das mulheres são de exaustão. “Elas estão mais fragilizadas. O recurso emocional fica nessa lógica de reagir. É muito desgastante”, diz a psicóloga que alerta para os riscos da exposição excessiva ao estresse, como distúrbios do sono, ansiedade e depressão. “Diante dessa complexidade (da pandemia), é normal não estar bem, ter alguma questão. É preciso acolher a situação”, complementa.
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