A pandemia do novo coronavírus impôs mudanças drásticas à vida da população. Para as mulheres, em especial, ela potencializou alguns aspectos da desigualdade de gênero. Em perspectiva, se 1.350 foram vítimas de feminicídio em 2020, assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, este ano trouxe mais desafios. Além da violência física e outras adversidades conhecidas, como remunerações inferiores — em 2019, a média salarial era 77,7% menor que a dos homens —, profissionais, mães e cuidadoras se reinventaram frente aos obstáculos nunca imaginados na pandemia de covid-19.
Para entender os impactos do novo coronavírus sobre a vida das mulheres, o Correio foi em busca de relatos sobre o cotidiano delas. A reportagem ouviu pesquisadores, ativistas, integrantes de diversas categorias profissionais, além de representantes do poder público. O resultado você confere, a partir de hoje, na série especial Mulheres na pandemia: vulnerabilidade e luta.
A crise sanitária resultou, em um primeiro momento, no confinamento em massa. A econômica foi a consequência que bateu às portas de diversas famílias. Com o cenário ainda imprevisível e as mortes, comércio e serviços se retraíram, e manter o emprego virou desafio.
O desemprego entre elas é de 21,1%, enquanto, para eles, é de 16,4%. O economista Thiago Rosa explica que a pandemia agravou essa condição, que ele classifica como histórica. “Essa diferença existe desde sempre entre os dois sexos. Não houve melhora na disparidade. O complicador para as mulheres no mercado de trabalho é que elas dedicam mais tempo aos afazeres domésticos do que os homens. Na pandemia, como muitas atividades foram levadas para dentro da casa, houve uma sobrecarga.”
Esse acúmulo de tarefas afetou a busca por emprego para pessoas do sexo feminino. No entanto, o economista acredita que, com a escolaridade em média superior à dos homens, as mulheres podem levar vantagem no cenário pós-pandêmico. “Com mais teletrabalho, talvez elas se saiam melhor nesse reorganização, pois com mais escolaridade, tendem a se dar melhor com a tecnologia”.
Desemprego
Quando a pandemia explodiu, em março do ano passado, Ericka Esteves, 31 anos, viu as diárias minguarem. “Eu trabalhava todos os dias, nem no domingo eu parava. Agora, não estou trabalhando, por causa dessa doença e vivo com a ajuda de Deus. Acho humilhante ficar pedindo, porque tenho meus braços e minhas pernas para trabalhar.” A renda das faxinas era o que sustentava a casa simples, no bairro de Santa Luzia, na Estrutural, onde ela mora com os quatro filhos — de 6 meses a 11 anos. Antes da covid-19, ela estava empregada havia 11 anos com os mesmos patrões.
Sem conseguir trabalho, ela recorreu ao auxílio emergencial e ao DF Sem Miséria para o mínimo. “Com leite, encho metade do copo, a outra, eu completo com água e açúcar para dar para todo mundo. Se não tem, procuro capim-cidreira para fazer chá. A gente passa meses sem carne”, desabafa. Sem a “estratégia”, ficaria ainda mais difícil alimentar a família.
Ericka é uma das 481.980 pessoas que recebem o benefício do governo federal no DF, que tem 165.049 famílias inscritas no Cadastro Único. Dessas, 131.893 têm uma mulher como responsável. Quanto ao DF Sem Miséria, são 125.929 atendidas, que recebem um cartão com R$ 170 para comprar alimentos. No total, Ericka passa o mês com R$ 545. “É preocupante. Sento na beirada da cama e me desespero. Tenho meu marido, mas, com ele, não dá para contar”.
No meio da crise, em julho do ano passado, ela adoeceu. Depois de muitos enjoos, procurou um médico e descobriu que estava com leucemia. Mas o diagnóstico foi além: apesar de ter feito uma laqueadura em 2018, estava grávida. Ela tentou manter algumas diárias, mas não conseguiu continuar e começou um tratamento no Hospital de Base. Diante de tantos problemas, Ericka desenvolveu outra doença: “Juntava tudo na cabeça, tive uma depressão por causa da situação financeira”.
Foi só em janeiro de 2021, quando Aruanda nasceu, que ela pôde enfim, fazer o transplante de medula. “Nenhum dos meus filhos tinha sangue compatível, só a bebê, que foi a doadora.” Agora, curada, Ericka quer voltar ao mercado de trabalho. “Dei a volta por cima. Vou na lan house para fazer o currículo. Quero tentar vagas de auxiliar de serviços gerais e em lanchonete, pois sou boa cozinheira”, conta.
Mudança brusca
Em março do ano passado, pouco antes da emergência da pandemia de covid-19, a comissária de bordo Patricia Quintiliano, 30, se preparava para voltar à ativa, depois de seis meses em licença maternidade. Contudo, o surgimento e o aumento das infecções pelo coronavírus no país impactaram diretamente o setor em que trabalhava. “Quando começou, sabia que afetaria diretamente o turismo. Foi um pânico.”
Com as restrições à circulação de pessoas, o setor de transporte aéreo demitiu cerca de 14,9% da força de trabalho entre fevereiro e novembro de 2020. Em agosto, Patrícia foi uma delas. Os voos foram cancelados, e houve retração de 92% no fluxo de aviões nos aeroportos, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNC). No mesmo mês, o marido de Patrícia também foi demitido. Com isso, o casal teve de se virar com o seguro-desemprego dele e o restante da recisão dela.
A família precisou fazer as contas se mudou de Águas Claras para o Gama, onde o aluguel era mais barato. Outros gastos como delivery, também foram suspensos. “Tivemos de cortar despesas. Certos luxos, não havia mais”. Para compensar a perda salarial, Patrícia aceitou um trabalho em uma área fora da sua: como propagandista médica. “Tinha de mostrar que era boa, me esforçava, tinha de bater as metas.” Ao contrário do trabalho como comissária, em que viajava todas as semanas, agora, estava confinada no próprio quarto, em reuniões virtuais e em home office.
Assim como tantas mulheres, Patrícia ficou sobrecarregada com as tarefas domésticas e o trabalho. “Com duas crianças, não dei conta, surtei. Meu bebê menor acordava oito vezes por noite De manhã eu fazia o café e me arrumava. Deixava os dois com o pai e me trancava no quarto. Dava o almoço deles e, depois, fazia a rotina do sono para, às 14h, voltar a trabalhar. Quando vi que estava me afetando, pedi as contas.” Desde de outubro, ela está sem trabalho. Agora, vacinada com a primeira dose, quer voltar ao mercado. “É a esperança de dias melhores. A notícia boa é que a empresa tem chamado as pessoas. Quem sabe não recebo um e-mail?”, torce.
Empreendedorismo
Para outras mulheres, a alternativa para compensar a perda na renda foi abrir um negócio. Um levantamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) mostra que o DF concentra 1% das empreendedoras do país: são 119.147. Dessas, 40% têm nível superior— a maior proporção do país. Elas também são jovens: 57% têm até 44 anos. Além disso, quase metade delas, (47%) são chefes de família. O estudo ressalta que, em comparação aos homens de todo o Brasil, mulheres donas de negócios têm maior grau de escolaridade, mas, contraditoriamente, ganham menos do que eles.
A engenheira civil Fernanda Gomes, 34, foi uma das que decidiu abrir a própria empresa em meio à pandemia. Ela se formou em 2019, quando começou a procurar vagas na área. Sem conseguir uma oportunidade. Com a crise sanitária, decidiu arriscar: transformou a conta pessoal no WhatsApp em comercial e passou a anunciar consultorias nas redes sociais. “A construção civil é mais competitiva para as mulheres. Não tive resposta dos currículos que enviei. Foi pela necessidade, porque eu tinha até medo de empreender”, revela. Enquanto as consultorias não vinham, ela investiu no freelance. O primeiro trabalho foi a obra no condomínio onde mora, em Vicente Pires. Os serviços começaram a aumentar quando os casos da pandemia arrefeceram, e ela fechou contratos até com bancos. “Quando eu estava em momentos críticos, ninguém me ligava. Meu negócio ainda não está com força total como eu gostaria. Ainda há pessoas com receio de ficarem doentes, não querem ter contato e estão adiando as obras”, observa.
Fernanda também tem medo de se contaminar trabalhando, mas ela não pôde parar. “Uma vez, fui chamada para fazer um laudo urgente, e a cliente estava com covid, muito mal. A filha dela que me atendeu.” Com as contas chegando, ela precisou rever os gastos da família. “Brinquedos, despesas com escola, alimentação, tivemos que diminuir”, conta.
Confiante na desaceleração da pandemia, Fernanda torce pela continuidade da demanda. Por isso, ela planeja continuar com a empresa depois do fim da crise. “Acredito que, quando passar a pandemia, as coisas vão melhorar. Meus planos são continuar com a empresa e com algo fixo, com salário certo”.
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