Crônica da Cidade

por Severino Francisco severinofrancisco.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Mestre anárquico

João Evangelista foi uma das pessoas de inteligência mais cintilante que eu conheci. Ao registrar a morte de João, ocorrida em 4 de abril, eu não imaginava que sua presença fosse ainda tão marcante em várias gerações de brasilienses. Perguntei ao artista plástico Wagner Hermusche se se lembrava de João e ele respondeu prontamente: “Claro, foi ele que me iniciou na arte”. De maneira semelhante, João influenciou e influiu na formação de artistas, alunos, críticos e colegas.

Tinha múltiplos talentos de professor, crítico, curador, gestor cultural e artista plástico. João foi um personagem muito importante da vida cultural e acadêmica de Brasília nas décadas de 1980 e 1990.

Era um mestre da erudição, da inteligência, da crítica e do bom humor. A erudição não era empecilho para a comunicação direta, insinuante e generosa. Deu aulas, cursos livres, cursos de extensão, organizou mostras e dirigiu o Museu de Arte de Brasília.

Em entrevista concedida à jornalista Valda Queiroz no boletim UnB Notícias, é possível acompanhar o brilho e a velocidade do pensamento de João. “Montaigne dizia que a filosofia é ‘aprender a morrer’. Mas houve quem dissesse também que a filosofia é aprender a viver”.

Ao ser indagado sobre o que o levou a ser um erudito, ele responde: “O interesse pela humanidade do homem. Em qualquer destas direções a história do homem foi meu referente. Mas com grande pesar por não ter podido ler a estética das ciências exatas, não entender de astrofísica, por exemplo, como entendia o meu amigo Eudoro de Souza.”

O mergulho na história não conduziu João à alienação política. Ele tinha o sentimento do mundo e integrou o grupo de professores que resistiu ao cerceamento do regime de exceção instalado a partir de 1964. A resistência culminou na criação da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (Adunb). João viveu 91 anos e comenta na entrevista: “Envelhecer é chato, mas é a única maneira de a gente viver bastante, não tem outro jeito.”

O professor Briquet Lemos teve a satisfação de conviver com João no Departamento de Biblioteconomia da UnB. Lembra que João não era só o professor erudito e amigo de todos, mas, principalmente, uma mente aberta ao debate e à busca de novos conhecimentos. A arte não era apenas objeto de seus estudos de crítico e historiador, mas também seu campo de criação.

Briquet guarda várias pinturas e desenhos, dois deles retratos a bico de pena de dois filhos, Felipe (sim, o baterista da banda Capital Inicial) e Helena, de quem João era amigo. Os jovens se identificavam, imediatamente, com o temperamento anárquico, irreverente, bem-humorado e afetuoso de João “Os jovens da Colina, onde fomos vizinhos por 12 anos, o admiravam muito”.

João descobriu e incentivou talentos tanto em Brasília quanto em Florianópolis. Era um grande conhecedor da arte popular de que é exemplo seu magnífico Mestres do Juazeiro: cotidiano e símbolo na escultura popular, lembra Briquet. “Visitei-o há alguns anos em Ribeirão Preto, para onde levou e ampliou sua coleção, com destaque para objetos de arte decorativa, como os vidros Mary Gregory. Cercado de beleza, não se desligava do mundo”.

PS: Errei: em crônica anterior, afirmei que João Evangelista havia criado o Museu de Arte de Brasília. Na verdade, o Museu foi criado quando Leda Watson era a diretora, mas João fazia parte da equipe. Logo em seguida, João foi diretor e fez um trabalho magnífico.