Com a pandemia, convidei minha filha Isabel e meus dois netos — Aurora, 7 anos, e Judá, 4 — para morar em casa. A sala virou escola virtual, ciclovia, ateliê de desenho, palco de teatro, pista de dança, pista de corrida e pista de skate. O estrago é grande. Depois que passar a pandemia, terei de fazer uma reforma drástica no piso.
Aurora e Judá são uma festa permanente. Algumas vezes, tenho a impressão de que existem 10 crianças em casa. Mas estou preocupado. A irresponsabilidade dos governantes estendeu a crise sanitária, e é preciso um cuidado especial com o desenvolvimento físico, cultural, social e psíquico das crianças.
Ela gosta de jazz; ele, de rock and roll. Aurora parece ter saído de uma academia de dança celestial: anda com passos de bailarina, possui uma encantadora graça natural. Judá parece ter saído de uma caverna sideral: é bem-humorado, pilhado, afetuoso, rebelde, instável, marrento e igualmente encantador.
Ela gosta muito de um livro que demos sobre a dança em vários países. “Este dia é perfeito para ler um livro de dança”, comenta. Judá replica: “Este dia é perfeito para não ler um livro de dança”. Tem de manter a pose de mau. Todavia, na verdade, ele ama os livros, a leitura tem hora para começar, mas não para terminar. Sempre pede mais um.
Quando crescer, vou matriculá-lo em uma academia de artes marciais, para que aprenda a ter disciplina, a se concentrar e a canalizar a energia. Judá é voluntarioso, independente e audacioso. Se quer tomar um iogurte, não pede para ninguém, empilha, perigosamente, duas cadeiras e escala o armário até alcançar o objeto de desejo.
Ele é do signo de câncer. É puro afeto, sujeito a trovões, chuvas e tempestades no decorrer do período. Certa vez, perguntei se a mãe era bacana, e ele respondeu: “Sim, é bacana e não é uma bruxa”. Mas, se quer macarrão e a mãe nega para controlar o consumo excessivo de alimentos que podem levar ao sobrepeso, ele reage: “Eu não te amo, você não me ama”. E sobe na escalada: “Você nunca foi minha mãe”.
Sempre explicamos para ele que quem ama impõe limites; quem ama, educa. Gosta de correr, de lutar, de tocar bateria, de assistir desenho animado e de comer macarrão. Mas, depois de uma boa conversa, em um átimo, revê a posição: “Mãe, mudei de opinião, te amo”. Na verdade, essa é a grande questão de nossas vidas: quem nos ama e quem não nos ama.
No sábado, Judá fez 4 anos e comemoramos com uma festa temática, inspirada no Chaves, fechada, sem convidados. Eu fui o Seu Madruga e fiz sucesso com meu chapeuzinho desabado. Conforme instruções da Aurora, cada um se escondeu em um canto e, quando ele acordou, nós o abraçamos e beijamos. Brincou o dia inteiro. Os olhos dele brilhavam de felicidade, o que nos deixou feliz com sua alegria.
Há algumas semanas, Aurora disse: “Minha vida era tão perfeita antes da pandemia. Este coronavírus é um idiota!” Esclareci a ela que existem personagens mais idiotas. E que, talvez, o vírus tenha vindo para nos ensinar o respeito pelo meio ambiente, o inconformismo com as desigualdades sociais e a solidariedade. Ela é veloz de inteligência e sensibilidade, fez um desenho e escreveu que acabar com o vírus depende de nós.
A inocência das crianças estabelece um contraponto trágico com a pandemia. Desde que Aurora e Judá nasceram, intensificou-se em mim o compromisso de lutar para que tenham um mundo melhor. Para mim, eles representam todas as crianças do mundo. Sei que é utópico. Mas, mesmo nos piores momentos, eu acredito que os deuses sempre jogam seus dados.