Caminhando e sentindo uma bela ressaca dominical, reparei uma senhora em situação de rua. Próximo ao prédio onde moro, ao lado de uma padaria, ela ocupa um espaço organizado, como se paredes invisíveis delimitassem sua casa ao ar livre — quase uma versão taguatinguense de Dogville, do dinamarquês Lars von Trier.
Um espaço próximo a uma estrutura de concreto e metal, que armazena cabos elétricos, parece ser o seu quarto, com colchão, cobertores, malas e algumas roupas. É um local estratégico, pois a caixa de energia corta o vento frio da noite. Ao lado, ela colocou várias plantas, armazenadas em vasos de plástico, acho que de maionese. Junto à parede de alguns comércios, está a sala dela, com outro colchão e cobertores. De vez em quando, ela recebe visita de outras pessoas em situação de rua para um bate-papo. Um pequeno rádio de pilha serve como entretenimento para ela e os convidados.
Na sala há também umas caminhas de cachorro. São três bichos, um já adulto e dois filhotes. Perto deles estão as vasilhas com água e ração, sempre cheias. Os moradores da vizinhança não deixam faltar nada, nem pros bichinhos e nem para a senhora, que vive por lá há muito tempo, sem ser importunada e sem importunar ninguém — muito pelo contrário, é figura folclórica da região. E em tempos sombrios, onde nossa humanidade é colocada à prova, essa senhorinha não é incomodada por sua condição de rua e conta com a solidariedade de muitas pessoas. É algo louvável.
Ela sempre puxa papo com quem passa pela calçada — ou através da casa dela. São muitos os visitantes que estão apenas de passagem. Alguns a cumprimentam, outros baixam a cabeça e a ignoram. Ela já elogiou meu gosto por uma cerveja gelada, numa tarde de calor, quando eu passei com uma longneck na mão. “Bom demais essa verdinha nesse calorão, né meu filho?”. Minha companheira também ganhou elogios um dia desses: “arrasou no look, heim amiga?!”. Nunca interagi muito com ela. Respondo com uma frase e outra ou um sorriso.
Ela deve ter desistido de morar debaixo de um teto, cercado por paredes, ou talvez nunca teve a oportunidade de ter uma “casa convencional”. Em seu lar na rua, a senhora parece contar apenas com o que realmente importa para ela: as plantas, os cachorros, os colchões, os cobertores e um rádio. Naquela tarde de domingo, ela não falou nada para mim e eu decidi apenas observá-la por alguns segundos, sem qualquer interação, por mais mínima que fosse.
Conversar com ela traria à tona uma realidade que não estava preparado para ouvir naquele momento. Preferi conservar a imagem: a senhorinha em sua casa imaginária, com suas plantas e seus cachorros. Porém, pretendo visitá-la em breve (sem ser de passagem), levar alguns presentes e bater um papo em sua sala.