Crônica da Cidade

Tratoraço em Galeno

Assisti pela tevê a uma cena estarrecedora e reveladora do estado de ignorância que assola o país e Brasília: um trator arrasou uma calçada de Brazlândia criada pelo artista plástico Galeno. A calçada é de pedra portuguesa e padecia do descaso há muito tempo, nunca recebeu manutenção, as peças avariadas foram remendadas com cimento.

Ainda bem que a população de Brazlândia reagiu e a depredação foi interrompida. O escândalo provocou um jogo de empurra da administração com a Terracap, sem que ninguém quisesse assumir a responsabilidade pelo ato de vandalismo oficial. É chocante ver um trator da Terracap atacando a obra pública de um artista. Onde está o setor de patrimônio histórico e cultural?

Parece que a única forma de expressão cultural que os nossos governantes reconhecem é a música breganeja. Ela é uma monocultura tão devastadora quanto a soja, destrói toda a biodiversidade cultural. É a trilha sonora do obscurantismo. Bem, voltemos à Brazlândia.

Para quem não sabe, Galeno é um dos mais importantes artistas brasilienses. Athos Bulcão disse que Brasília deveria educar, cotidianamente, os brasilienses para cultivar a arte. Tenho dúvidas de que isso aconteça com todos. Contudo, no caso de Galeno, a cidade funcionou mesmo como uma grande escola ao ar livre.

Nasceu em Parnaíba, no Piauí, e se mudou para Brasília em 1965, aos oito anos. Com a inquietação de curumim arteiro, paulatinamente, assimilou o espírito da cidade ao vivenciar a arquitetura de Niemeyer, os painéis de Athos Bulcão, as bandeirinhas de Volpi e a pintura de Rubem Valentim, inspirada nos signos do candomblé e da cultura afro-brasileira. Aprendeu a valorizar a sua vida de menino nordestino e a olhar para os objetos, as brincadeiras e as festas sob um prisma modernista.

Com figuras e materiais precários (carrinhos de lata de sardinha da infância, carretéis, bilros da mãe bordadeira, canoas construídas pelo avô, móveis do pai marceneiro), ele faz uma festa brasileira para os olhos. A sua arte é de extremo requinte e elegância. Tem algo do traço, da fantasia, do ritmo e da signagem de Volpi, de Athos Bulcão e de Rubem Valentim, mas é, cada vez mais, puro Galeno.

Em vez de jogar a experiência pessoal debaixo do tapete e copiar a última moda de Paris ou Nova York, escavou, de maneira (quase sempre) autodidata, com muito trabalho, um caminho singular. Percebeu que, para encontrar uma linguagem própria, precisava voltar às coisas simples de menino inebriado pelas formas e cores do Delta do Parnaíba piauiense.

Galeno começou a ser conhecido, nacionalmente, quando teve a arte divulgada por Anna Maria Niemeyer, filha do arquiteto Oscar Niemeyer, dona de uma famosa galeria no Rio de Janeiro. O prestígio internacional veio depois que o Cerimonial da Presidência da República passou a adquirir os seus quadros e gravuras para que os presidentes presenteassem representantes de outros países.

A intenção é mostrar o que o Brasil tem de melhor: a alegria, o ritmo, a cor, o desejo de felicidade, mesmo sob o peso dramático das desigualdades sociais. A paixão pelo futebol virou arte: ele fez questão de desenhar as camisas do time de Brazlândia, cidade onde mora em Brasília.

Os destinos de Galeno e de um dos mestres do modernismo, Alfredo Volpi, se cruzariam em 2009 na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima (108 Sul). Foi convidado a refazer, com a sua visão, uma parede pintada por Volpi, que um padre de poucas luzes apagou com uma demão de tinta. Como se vê, Galeno é um dos filhotes do modernismo de Brasília. Passar o trator em cima de uma obra de Galeno é um ato inominável de vandalismo cultural. É mais grave do que pichar um monumento.