Mesmo com o aumento na quantidade de doações do ano passado para cá, o estoque de sangue de três tipos está em baixa no Hemocentro de Brasília. No primeiro semestre deste ano, as transfusões para pacientes aumentaram de 34,3 mil para 36,6 mil (6,6%), sobretudo devido à retomada das cirurgias eletivas na rede pública de saúde (leia Distribuição). Com a alta na demanda, a fundação precisa de mais doadores, principalmente daqueles com fator Rh negativo — componente proteico dos glóbulos vermelhos.
Um dos motivos para a diminuição desse grupo específico tem a ver com o fato de ele ser menos comum entre a população, mas transfundido para mais pessoas — um sangue com fator negativo pode ser recebido por alguém com fator positivo, mas o contrário não é possível. A Fundação Hemocentro informou que o movimento menor de doadores nas últimas semanas descompensou os estoques. “Algumas reservas podem baixar mais rápido pela demanda da rede. A média de 19 a 22 de julho foi de 116 doações por dia, enquanto a das outras semanas deste mês ficou em 150. Em junho, o índice foi de 186, a melhor média de 2021”, informou a instituição.
A empresária Lorena Novaes, 43 anos, está com o marido, Jarbas Ari, 51, internado por covid-19 desde 17 de junho. Em fase de reabilitação na unidade de terapia intensiva (UTI), o paciente depende de transfusões. “Ele é O positivo e recebeu duas bolsas de sangue em um só dia. Fizemos uma campanha junto ao Hemocentro e publicamos nas redes sociais. Ver a mobilização das pessoas trouxe muita paz, porque mostrou que existe muita gente que se importa”, comenta. Jarbas Ari teve 100% do pulmão comprometido e ficou 21 dias em coma induzido. “Nossa filha de 5 anos chora todos os dias, perguntando quando vamos buscá-lo no hospital”, completa Lorena.
O ato de solidariedade da população ajudou a salvar a vida de Kelson Miranda, 28. Diagnosticado com leucemia aos 12, o criador de conteúdo passou por um transplante de medula óssea em julho de 2019. Após a adequação do corpo, de janeiro a março do ano seguinte, ele recebeu doações de sangue, que o auxiliaram na recuperação. “No decorrer do processo, recebi transfusões de amigos e fizemos uma campanha nas redes sociais junto ao Hemocentro. Quando a gente recebe, o corpo fabrica as hemácias, o que dá incentivo ao quadro de saúde. O corpo demora de 15 a 30 dias para pegar (se adequar à) medula. Não fosse essa ajuda, o tempo seria maior”, relata.
Altruísmo
Na primeira metade deste ano em relação ao mesmo período de 2020, a quantidade de doações subiu 8,5% (de 22,8 mil para 24,7 mil). A média anual é de 50 mil. Uma das pessoas que contribuiu nesse período foi Henrique Gaspar Barros, 30. A mais recente visita dele ao Hemocentro de Brasília ocorreu em 10 de maio. “É uma questão de fazer bem ao próximo. Eu me comprometi a fazer isso, no mínimo, de três em três meses”, relata o empresário e morador de Taguatinga Norte.
O estudante de engenharia civil Calebe Ferreira, 21, abraçou o hábito aos 18 anos, por influência de amigos e familiares. Desde então, doa de três a quatro vezes por ano. A prática também tem relação com um momento de 2005, em que o jovem viu o pai, Afonso Beserra, 54, precisar de uma transfusão antes de uma cirurgia. “A maior dificuldade foi achar alguém com o tipo sanguíneo compatível na família. À época, o dele estava em falta, e era o mesmo do meu”, recorda-se o rapaz, que ainda não tinha idade para ajudar.
Apesar da menor quantidade dos tipos A, B e O negativo nos estoques, os demais grupos estão em nível regular ou adequado. Ainda assim, doações são sempre bem-vindas. A Fundação Hemocentro de Brasília informou que a alta nas transfusões também tem relação com o atendimento a pacientes com doenças nas hemoglobinas ou nos rins, além daqueles em tratamento oncológico.
O vigilante Paulo Eduardo Pinho, 55, sempre faz doações de sangue no começo do ano. Essa história, porém, começou em 1985, ano em que serviu no Exército Brasileiro. “Gostei e viciei. É importante, porque salva vidas. Já doei para mães de amigos que precisavam fazer cirurgia e, graças a isso, conseguiram voltar para casa”, orgulha-se o morador de Ceilândia Norte.
Distribuição
A transfusão para pacientes ocorre de acordo com o quadro clínico. Uma bolsa de sangue contém quatro componentes que podem ser transfundidos juntos ou separadamente, a depender do caso. São eles: hemácias, plaquetas, plasma e crioprecipitado. Com isso, é possível que a doação de uma pessoa ajude mais de um receptor.
Três perguntas para
Martha Mariana Arruda, médica hematologista da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF), do Hospital Sírio-Libanês e administradora do banco de sangue do Hospital Regional do Gama (HRG)
Quais os efeitos fisiológicos no corpo de um paciente que recebe sangue por transfusão?
No contexto em que estamos falando, que é o de transfusão de hemácias (células vermelhas), a situação mais importante que demanda transfusão é a anemia aguda, que acontece em perda de sangue após grandes cirurgias e outros procedimentos invasivos, como traumas, pós-parto e nas situações em que a medula óssea não está funcionando adequadamente, como nas leucemias agudas. Nestes casos, pelo fato de ser uma situação de instalação rápida/aguda, o organismo não está preparado para lidar com a anemia, e isso gera uma grande sobrecarga sobre o coração. A depender do grau da perda sanguínea, não transfundir aumenta absurdamente a mortalidade. A transfusão devolve a massa de células vermelhas que foi perdida no sangramento ou quando a medula óssea está disfuncional, e a pessoa volta a oxigenar normalmente os tecidos, tirando sobrecarga sobre o coração.
De que forma uma doação de sangue influencia no quadro de saúde de um paciente que recebe a transfusão hemocomponente?
No que chamamos de “transfusão de sangue”, na verdade, transfundimos apenas aquilo que está “faltando” para o paciente. No caso de um paciente com anemia, muitas vezes precisa de transfusão de hemácias para voltar a oxigenar adequadamente os tecidos, como expliquei acima. Um paciente com plaquetas baixas precisa de transfusão de plaquetas, outro componente que extraímos da bolsa de sangue doado, para evitar sangramentos anormais. Um paciente com determinados distúrbios de coagulação precisará de transfusão de plasma, outro hemocomponente retirado da bolsa doada, também com o objetivo de evitar sangramentos anormais. E em última instância, o transplante de medula óssea é um tipo de “transfusão” em que somos capazes de devolver a função da medula de um paciente que tem doenças medulares como a leucemia aguda, alguns tipos de anemia, alguns tipos de linfomas, dentre outros.
A pandemia da covid-19 trouxe quais dificuldades para a transfusão de sangue?
A pandemia basicamente complicou praticamente todas as etapas do ciclo do sangue: desde a dificuldade de obtenção do hemocomponente, já que os bancos de sangue tiveram restrição de funcionamento, os potenciais doadores deixaram de buscar os hemocentros para doação, aumentaram as restrições para doação. Cito como exemplo os profissionais de saúde, que ficaram bastante tempo sem poder ser doadores pelo seu alto grau de exposição ocupacional ao covid-19. Tivemos dificuldade de obtenção de insumos no início da pandemia, dificuldades de transporte, no banco de sangue do Hospital do Gama (que eu administro), tivemos 15 funcionários doentes por covid-19 num intervalo de três semanas, ou seja, por pouco faltou pessoal para fechar as escalas. E o aumento absurdo da demanda por sangue pela grande quantidade também absurda de pessoas que tiveram complicações da covid-19 e precisaram de cuidados intensivos. O que não faltaram foram dificuldades.
Resultados
Doações por faixa etária em 2020
Menores de 18 anos — 1%
8 a 29 anos — 41%
30 a 39 anos — 28,3%
40 a 49 anos — 19%
50 a 60 anos — 8,8%
Maiores de 60 anos — 1%
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