“Sou um homem que tem saudade de Deus”, confessou Candido Portinari quando os médicos o impediram de pintar para não agravar sua grave intoxicação pelas tintas. E o que diria, hoje, Brasília, pela total ausência de Portinari nos seus palácios e templos? Garanto que a expressão de tristeza seria a mesma: “Sou uma Capital que tem saudade de Candido Portinari”.
Portinari faleceu dois anos depois de Brasília ter sido inaugurada. E, talvez, tenha partido triste. Motivo não faltou. Portinari está na sede da ONU, em Nova York, com seu mural “Guerra e Paz”; na Biblioteca do Congresso, em Washington; no complexo Cultural da Pampulha, em Belo Horizonte; e em tantos outros museus e palácios do mundo. Menos na capital do Brasil.
Desencontros, divergências burocráticas e uma certa dose de impaciência por parte da diretoria da Novacap levaram Portinari a ficar de fora do projeto da construção de Brasília.
Pelo menos por três motivos, Portinari deveria ser parte da vida cultural brasiliense.
Primeiro, porque Brasília é a síntese do Brasil. E tinha que incorporar na sua História o pintor síntese do Brasil.
Segundo, porque nos anos da construção, Portinari era o pintor brasileiro mais importante e mais festejado no país e no exterior.
O terceiro motivo é histórico e faz parte da Memória: Brasília nasceu na Pampulha, em Belo Horizonte, quando o então prefeito Juscelino Kubitschek convocou Oscar Niemeyer para projetar e construir o ousado complexo arquitetônico e cultural às margens da Lagoa da Pampulha. Quem eram os parceiros de Oscar? Candido Portinari e Burle Marx.
Em 1956, começou a saga da construção. Nos chapadões invioláveis do Planalto Central, JK comandou a maior aventura formal nas artes e na geopolítica, erguendo Brasília. Surpreendeu o mundo.
Em junho de 1958, JK inaugura o Palácio da Alvorada. E toda essa movimentação era o desafio de ter uma bela capital pronta para ser inaugurada em 21 de abril de 1960. O presidente JK reuniu em torno do arquiteto Oscar Niemeyer e do urbanista Lucio Costa, autor do Plano Piloto, os mais destacados gênios da arte brasileira: Athos Bulcão, Burle Marx, Alfredo Ceschiati, Bruno Giorgi, Mariane Peretti e Di Cavalcanti. Mas, nesse time, faltou o intérprete das artes brasileiras, o de maior projeção internacional: Candido Portinari.
Pintor, gravador, ilustrador, poeta e professor, Portinari dignificou o Homem Brasileiro e a História do País em todas as suas obras. Tão estranho quanto verdadeiro: não foi por falta de convite, nem por falta de interesse e muito menos por falta de projetos exclusivos que Portinari ficou fora de Brasília. Apenas um detalhe burocrático ou, quem sabe, um mal-entendido provocou essa ausência. Será que Portinari, com um portfólio de mais de cinco mil obras, não pensou em Brasília?
Esse mistério tem seu enigma agora decifrado. A verdade foi garimpada por João Candido, Fundador, Coordenador-Geral do Projeto Portinari e guardião da Memória do pai: o pintor deixou três desenhos maravilhosos exclusivos para a cidade. Oscar Niemeyer chegou a reservar duas paredes na Capela Nossa Senhora da Conceição, do Palácio da Alvorada, para dois murais. E outro espaço no interior do palácio para o terceiro mural. Foram três murais em mosaicos de Ravenna encomendados ao pintor.
Além dos desenhos originais, o filho João Candido resgatou até um ofício à Novacap, de 31 de janeiro de 1958, em que o Anjo de Brodowski detalhou a proposta de execução de um dos murais. O documento tem prazos e orçamentos definidos. No submundo da burocracia, passaram-se mais de meio século e só restou a carta-proposta e os desenhos. Nem resposta oficial houve. Apenas um tímido recado de seu amigo Athos Bulcão, dizendo que não havia sido aprovada a construção dos três murais. Aliás, Athos Bulcão foi convidado para a tarefa de substituí-lo na decoração do altar da Capelinha, mas não aceitou em homenagem e respeito ao amigo.
O tempo passou. Portinari faleceu em 1962. Brasília acaba de completar 61 anos. Agora uma boa coincidência: no embalo dos 200 Anos da Independência do Brasil, a serem comemorados em 7 de Setembro de 2022, bem se podia fazer um dos três murais que é, justamente, sobre o esquartejamento e morte do primeiro Herói da Independência, o tropeiro Felipe dos Santos. Ele liderou a revolta de Vila Rica, em 1720, motivada pela insatisfação popular com a alta dos impostos. O movimento foi embrião da Inconfidência Mineira, liderada por Tiradentes, 69 anos mais tarde.
Surge uma luz. João Candido recuperou os três originais. E, numa conversa com o Secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues, sonhamos sobre esse resgaste cultural. Há possibilidade. O desafio é grande e deve ser encabeçado pelo governador Ibaneis Rocha e pelo Secretário Nacional de Cultura, Mário Frias.
Além do mural de Felipe dos Santos, os outros são de Jesus em duas situações: um, pregando aos Apóstolos; e outro, Jesus Crucificado, sendo reverenciado por seguidores.
Portinari sempre desejou que figuras em sua obra fossem lançadas ao ar para virarem anjos. A arte que ele reservou para a capital, com certeza, terá heróis e novos anjos a voarem sob os céus de Brasília.
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