REPERCUSSÃO

Caso Naja: descoberta do esquema de tráfico de animais completa um ano

Em 9 de julho de 2020, Pedro Henrique Krambeck Lehmkuhl acordava do coma após ser picado por uma naja kaouthia. Incidente levou a investigação de comércio ilegal de animais, que segue no Poder Judiciário e tem quatro pessoas acusadas

Darcianne Diogo 
postado em 09/07/2021 06:00
Pedro Henrique (E) foi preso, mas liberado dois dias depois -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Pedro Henrique (E) foi preso, mas liberado dois dias depois - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Há um ano, o caso de um estudante de medicina veterinária picado por uma cobra resultou na descoberta de um esquema de tráfico de animais silvestres e exóticos na capital federal. Em 9 de julho de 2020, Pedro Henrique Krambeck Lehmkuhl, 23 anos, acordava do coma no Hospital Maria Auxiliadora, no Gama, após ser atacado dois dias antes por uma naja kaouthia que ele criava dentro de casa, no Guará 2. O desfecho do caso levou à denúncia de quatro pessoas, que aguardam os trâmites judiciais. Atualmente, o processo se encontra em fase de instrução — quando as partes envolvidas prestam depoimento — e terá oitiva de 57 testemunhas da defesa e duas da acusação.

O Correio teve acesso em primeira mão à integra do processo. O documento, com mais de 1,8 mil páginas, inclui fotos, vídeos, depoimentos e gravações do caso que gerou repercussão nacional. As peças contam com materiais que, para a Polícia Civil do Distrito Federal, comprovam a existência de um esquema de tráfico de animais.

Em 15 de junho, ocorreu a primeira audiência de instrução. Entre as testemunhas de acusação, prestaram depoimento o delegado William Andrade Ricardo — à frente das investigações —; o agente de polícia Helder de Oliveira Sousa; além dos amigos de Pedro: Luiz Gabriel Felix, Silvia Queiroz, Julia Vieira e Radynner Leyf. À época, os colegas do réu foram indiciados por posse ilegal de animal silvestre, fraude processual, associação criminosa, corrupção de menores e favorecimento real — por ajudarem alguém na prática de um crime —, mas foram beneficiados com acordo de não persecução penal — quando há negociação entre os acusados e o Ministério Público.

Duas testemunhas da acusação consideradas essenciais no processo não compareceram às audiências. Uma delas era Roberto Cabral, servidor do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que estava em operação na Amazônia. A outra foi Aloizio dos Reis Borba, morador de Luziânia (GO) que comprou, em 20 de março de 2020, uma cobra nigritus de Pedro por R$ 550. Em depoimento, Aloizio contou que os dois fecharam negócio pelo WhatsApp e combinaram a entrega da serpente na frente de um fast-food, no Gama. A reportagem entrou em contato com Aloizio, mas ele disse não ter interesse em se manifestar sobre o caso.

  • 08/11/2020. Brasil. Brasília - DF. Cobra Naja capturada pelo Ibama que estava no Zoológico é transferida para o instituto Butatã em São Paulo.
    Naja kaouthia foi levada ao Instituto Butantan, em São Paulo, onde permanece até hoje Minervino Júnior/CB/D.A Press

Linha do tempo

7 de julho
» O então estudante de medicina veterinária Pedro Henrique Krambeck é picado por uma naja kaouthia, no apartamento onde morava, no Guará 2. Na mesma noite, o amigo dele Gabriel Ribeiro recolhe cobras que estavam no local e as distribui entre outros endereços

8 de julho
» Gabriel deixa a naja kaouthia perto de um shopping no Lago Sul. Uma equipe do Batalhão de Polícia Militar Ambiental recolhe o animal

9 de julho
» A Polícia Militar resgata mais 16 cobras de Pedro Henrique, em um Núcleo Rural de Planaltina

22 de julho
» Gabriel Ribeiro é preso, acusado de atrapalhar as investigações

29 de julho
» Pedro Henrique Krambeck é preso pelo mesmo motivo

31 de julho
» Gabriel Ribeiro e Pedro são liberados da prisão

13 de agosto
» Polícia Civil conclui inquérito e envia provas ao Ministério Público

28 de agosto
» Ministério Público do DF e Territórios denuncia envolvidos

3 de setembro
Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios acata a denúncia

  • 16/07/2020. Brasil. Brasília - DF. Cidades. Caso Pedro Henrique Lemkuhl, estudante de veterinária picado por uma cobra naja. Na foto, o padrasto do Pedro Henrique, Eduardo Conde, na 14ª DP do Gama.
    Padrasto de Pedro Henrique, o tenente-coronel da PMDF Clóvis Eduardo Conde também foi denunciado Ana Rayssa/CB/D.A Press

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Polícia encontra outras 22 serpentes

Na tarde de 7 de julho de 2020, Pedro Henrique Krambeck estava em casa, em um condomínio no Guará, e brincava com a naja. Ele acabou picado pela serpente. Um vídeo que circulou à época do caso mostra o momento em que o jovem desce pelo elevador do prédio com o irmão mais novo, enquanto segura um papel sobre o braço. Pedro Henrique entra no carro da mãe, Rose Meire dos Santos, e é levado a um hospital no Gama.

Com necrose no braço e lesões no coração, o estudante acordou do coma dois dias depois. O tratamento dele contou com um soro antiofídico produzido com o veneno da naja kaouthia, trazido ao Distrito Federal diretamente do Instituto Butantan, em São Paulo. Havia só uma dose disponível. A criação dessa espécie no Brasil é proibida por lei. Após o caso, o laboratório importou 10 doses para estoque dos Estados Unidos.

No dia do incidente, a Polícia Civil esteve no apartamento da família, mas não encontrou a serpente, o que gerou desconfiança dos investigadores. Só em 8 de julho, policiais militares encontraram a cobra, no Lago Sul. Ao longo da apuração do caso, testemunhas disseram aos agentes que Pedro Henrique comprava e revendia cobras. Conversas por WhatsApp entre o jovem e a mãe dele revelaram que o estudante costumava viajar para São Paulo e para a Bahia, na intenção de adquirir os animais, para comercializá-los em Brasília.

A polícia encontrou diálogos no celular de Pedro Henrique que reforçaram a existência do comércio. Em uma das conversas, a mãe pergunta: “E aí? Tá por onde? Jantou? E as cobras?” Pedro Henrique respondeu “Passando por Ibotirama (BA)” e finalizou dizendo que as serpentes estavam bem. Em depoimento, Rose Meire negou as acusações e alegou não saber que o filho criava os animais em casa. No entanto, as investigações da 14ª Delegacia de Polícia (Gama) concluíram que a advogada era responsável por cuidar dos bichos e da reprodução deles.

No apartamento onde Pedro Henrique morava com a família, a polícia encontrou ratos congelados no freezer. Os animais serviam para alimentar 23 serpentes, inclusive a naja kaouthia. O jovem também mantinha camundongos vivos, que ficavam na área de serviço. A naja permaneceu sob cuidados da equipe do Zoológico de Brasília até 11 de agosto de 2020, data em que foi transferida ao Butantan, onde permanece até hoje. Outras seis espécies de cobras exóticas apreendidas, incluindo a víbora-verde-de-voguel, também foram levadas para o instituto. A reportagem tentou contato com o centro de pesquisa, para saber como elas estão, mas não teve retorno.

Réus na Justiça

Pedro Henrique Krambeck foi indiciado 23 vezes por tráfico de animais silvestres, associação criminosa, maus-tratos e exercício ilegal da profissão. Também faziam parte do esquema: a mãe dele, a advogada Rose Meire dos Santos — indiciada por fraude processual, corrupção de menores, tráfico de animais, maus-tratos e associação criminosa; e o padrasto do jovem, o tenente-coronel Clóvis Eduardo Condi — indiciado por tráfico de animais, fraude processual, maus-tratos e associação criminosa. Além disso, Gabriel Ribeiro Moura, amigo de Pedro Henrique à época, foi indiciado por posse ilegal de animal silvestre, maus-tratos, fraude processual e corrupção de menores. Todos são réus na Justiça, mas respondem em liberdade.

Em dezembro, prestes a se formarem, Pedro Henrique e Gabriel foram expulsos da faculdade onde cursavam medicina veterinária, no Gama. A instituição abriu um processo administrativo interno contra, por terem levado uma cobra para a aula prática. “Um dos maiores problemas que esse processo causou na vida do Gabriel foi ele ter saído da faculdade perto da conclusão do curso. Ele era líder de um projeto de pesquisa e estava ansioso para se formar. Mas, logo, ele procurou outra instituição para dar continuidade (à graduação)”, afirmou a advogada do jovem, Juliana Malafaia.

Assim como Pedro Henrique, Gabriel continua no mesmo endereço e mora com os pais, no Guará. O jovem pegou a naja no dia em que o amigo foi picado e deixou a cobra perto de um shopping no Lago Sul. Na tarde de 7 de julho de 2020, Gabriel recebeu uma ligação da mãe do responsável pelo animal. Ela pedia que o amigo conseguisse um soro antiofídico para o filho, que estava internado, e que buscasse a naja. Gabriel pegou a serpente e a levou até um haras em Planaltina. No dia seguinte, à noite, deixou-a em uma caixa, na área do Pier 21, e avisou a polícia.

Atualmente, os dois não mantêm mais contato. Os dois teriam se falado pela última vez antes do caso da picada, segundo Juliana Malafaia. “Se o Gabriel não tivesse atendido aquela ligação da mãe do Pedro, provavelmente nada disso teria acontecido. O processo não teria tomado a proporção que tomou”, acrescentou a advogada.

O advogado criminalista Bruno Rodrigues, que atua na defesa de Pedro Henrique, afirmou que, depois de um ano da tramitação do processo e após as oitivas de diversas testemunhas de acusação, ficou “esclarecido que a acusação é extremamente abusiva”. “Nada se comprovou sobre tráfico de animais e quanto à alegação de maus-tratos. O que se demonstrou foi exatamente o contrário do que alega a denúncia. As próprias testemunhas de acusação informaram o notório zelo de Pedro no trato dos animais”, argumentou.

Antes do julgamento e divulgação da sentença, o processo precisa passar pelas fases de oitivas de todas testemunhas; interrogatório dos acusados; análise de possíveis novas diligências ou perícias; e apresentação de acusação final escrita, além de alegações da defesa.

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