João Evangelista Andrade Filho tinha múltiplos talentos: professor, crítico de arte, curador e desenhista. O legado mais visível e material que deixa é o Museu de Arte de Brasília, que ele criou e organizou. Graças a ação de João Evangelista, nós temos um acervo com obras de grandes artistas: Aldemir Martins, Amilcar de Castro, Franz Weissman, Marcelo Grassman, Siron Franco, Maria Cravo Neto, Iberê Camargo, entre outros.
A erudição não era incompatível com a verve, sempre engatilhada na ponta da língua. Na década de 1970, ele espicaçava o alheamento dos brasilienses em relação à cidade, propondo que fosse criada uma suposta “associação de não moradores de Brasília”. João morava em cidade do interior de São Paulo e nos deixou com 91 anos, na semana passada.
Ele foi uma pessoa muito importante na vida cultural de Brasília. Darcy Ribeiro gostava de repetir: “Só se fazem mestres com mestres”. E, de fato, João exerceu a mestria em diversos campos da vida cultural com alegria e bom humor. Contribuiu, decisivamente, para a formação de várias gerações de brasileiros como professor de história da arte na Universidade de Brasília, onde lecionou de 1963 a 1995.
Era um trabalho solitário que ele exercia com devoção, sem se importar com o número de alunos matriculados. Ostentava um currículo acadêmico respeitável em diversas áreas do conhecimento. Formou-se em direito e letras neolatinas, com pós-graduação em história da arte na École Pratique des Hautes Études, na Sorbonne, Paris.
Além disso, era doutor em filosofia pela UnB. O espírito anárquico impedia que a erudição se transformasse em um peso. Estava sempre pronto a questionar uma verdade estabelecida e assinaria embaixo da frase de Nietzsche: “Olhei para o meu diabo e vi que ele era grave”. Mas a postura irreverente contra o espírito de gravidade não significava ausência de seriedade e de compromisso. Tinha uma aguda consciência social e uma postura de combate às mazelas políticas e culturais.
Tornou-se uma referência não apenas para alunos. Organizou mostras itinerantes dos artistas brasilienses surgidos na virada da década de 1980, que circularam por várias capitais do país. Ele foi importante para a afirmação de uma geração de artistas na qual figuram Wagner Hermusche, Galeno, Ralph Ghere, Luiz Gallina, Sonia Paiva, entre outros. Hermusche considera que João foi o responsável pela sua iniciação na arte. Os textos primorosos que escreveu para catálogos deveriam ser republicados.
Eu conhecia João na condição de professor e de crítico. Visitava muito a sala que ocupava na UnB para conversar com ele e ouvir as suas provocações bem-humoradas. Quando anunciou uma exposição de desenhos, fiquei ressabiado, com receio de que a arte ficasse aquém do brilho de pensador da cultura. No entanto, João era um desenhista muito talentoso, de traço refinado, fazia desenhos eróticos irreverentes, permeados de referências à história da arte.
Depois que se aposentou, João foi morar em Florianópolis e eu o perdi de vista. Deveria ter rastreado o paradeiro. Com certeza, me divertiria se ligasse para ele e ouvisse as tiradas de inteligência e verve cintilantes. Sim, Darcy Ribeiro tem razão: só se fazem mestres com mestres.