Crônica da Cidade

>> (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

O coração tropical congelado

“Fiz ranger as folhas de jornal / Abrindo-lhes as pálpebras piscantes. / E logo / De cada fronteira distante/ Subiu um cheiro de pólvora / Perseguindo-me até em casa. / Nestes últimos vinte anos / Nada de novo há / No rugir das tempestades / Não estamos alegres, / É certo, / Mas também por que razão / Haveríamos de ficar tristes? / O mar da história / É agitado. / As ameaças / E as guerras / Havemos de atravessá-las. / Rompê-las ao meio, / Cortando-as / Como uma quilha corta / As ondas.”
Corro o risco de cometer “autoplágio”, pois provavelmente já comecei outra crônica com o mesmo poema de Maiakovski ou citei algum trecho. Mas meu coração tropical está como na canção de Aldir Blanc e João Bosco: coberto de neve. São mais de 500 mil vidas perdidas para uma doença cujas primeiras vacinas foram desenvolvidas há meses, pelo menos duas delas com ofertas de compras negadas pelo governo federal.
Perdemos amigos, colegas de trabalho, pais, mães, avós, tios, primos. “E daí?”, diriam alguns. Uma pandemia é, enfim, uma guerra. Mas desconsiderar a dor da perda de cada um é simplesmente crueldade. E, por isso, os versos de Maikovski e a canção que o acompanham na versão de João Bosco cortam o coração como uma quilha às ondas. É perder os batimentos por alguns segundos de tanta amargura. O luto é nacional.
As experiências mundo afora mostram a dificuldade de se combater a doença, mas também comprovam a diferença que fazem as palavras e os mínimos gestos de empatia e de solidariedade. Quando não é a morte que assombra os brasileiros, é a perspectiva de uma vida ainda mais dura e envolta de violências e de pobreza.
Resistir é o que resta, mesmo quando as forças se esvaem. Entregar-nos ao “tanto faz” ou à sensação de que não faremos a diferença é tão arriscado quanto se atirar ao mar aberto sem colete salva-vidas ou entrar em aglomerações sem usar máscara em plena pandemia de doença transmitida pelas vias aéreas. Sim, há risco mesmo em cada palavra, cada desistência, cada amanhecer sem propósito.
Por isso, a força agora é para tentar manter o prumo e unir esforços por um amanhã que transcenda toda a política e as más intenções. “Mesmo que eu mande em garrafas / Mensagens por todo o mar / Meu coração tropical partirá esse gelo e irá / Com as garrafas de náufragos / E as rosas partindo o ar.”