“Perdi meu companheiro da vida toda, meu primeiro amor, não consigo me conformar. Só sinto o vazio”, relata Gorete Costa, 62 anos, viúva do ex-servidor da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Costa, 68. Em março, ele tornou-se mais uma vítima da covid-19. Na tentativa de mitigar a dor pela morte do companheiro de 44 anos, ela se inscreveu para participar de um projeto de apoio psicológico para quem perdeu familiares por complicações da doença.
A iniciativa Cuidado ao luto é uma parceria entre a UnB e a Secretaria de Saúde, que promove encontros virtuais entre os inscritos e uma dupla de psicólogos em grupos de até 15 pessoas. A ideia é ajudar os participantes a atravessar o processo de luto em meio à pandemia. As inscrições abriram na última terça-feira e, em menos de 24 horas, todas as 285 vagas foram preenchidas. Agora, há uma lista de espera com 113 nomes para os próximos ciclos.
“(A procura) não me surpreendeu”, ressalta a psicóloga Larissa Polejack, uma das coordenadoras do projeto. “Quando a gente abriu o primeiro grupo na primeira onda. Em dois dias, teve 86 pessoas interessadas, até de outros estados e países”, pontua. Os encontros pretendem munir os pacientes de ferramentas emocionais para seguir adiante. “De alguma maneira, estamos conseguindo mostrar o sentido da solidariedade, que você pertence a alguma coisa, a gente precisa combater a solidão”, destaca a especialista.
“É quase um milagre tirar essa dor que sinto, esse vazio, estou na mesma casa em que a gente morava, não entendo como deixaram acontecer isso com ele”, diz Gorete. E essa é uma das principais queixas dos pacientes. Gorete e Antônio eram conhecidos nos corredores da UnB, onde ambos trabalhavam, como “casal 20”. “A gente fazia tudo juntos: ia ao médico, fazia ginástica, festa de criança, serestas, jogávamos sinuca a noite inteira. Já até ganhamos concurso de forró”, lembra Gorete. O primeiro beijo foi roubado, quando ela tinha ainda 12 anos. “Era muito galanteador, romântico demais”.
Agora, sem o marido, ela conta que o sentimento é de vazio. ‘Você não faz ideia de como é chegar em casa e não ver ele”, afirma. “Conversar com outras pessoas, seria muito bom, ajuda”, considera a aposentada. Por isso, a psicóloga Larissa Polejack defende que haja investimento em ações de saúde mental, durante as ações de enfrentamento da crise sanitária. “O luto mal-elaborado vai trazer consequências para o futuro, por isso a necessidade e urgência de agir nesse momento para mitigar os efeitos da pandemia”. Entre os riscos está o acometimento pela depressão.
Um relatório publicado nessa terça-feira passada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), que reúne 38 países, aponta que é urgente elevar o investimento e a qualidade do atendimento na área, pois estão previstos impactos econômicos associados aos problemas de saúde mental, que podem comprometer até 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB) dos membros.
Elaboração do luto
Até esta quarta-feira, 8.868 pessoas morreram no DF em decorrência da covid-19. “Com esse número de mortos que a gente tem, com essa dor que as pessoas estão sentindo, precisamos chamar atenção para a ausência de uma política pública para cuidar da saúde mental”, alerta Larissa Polejack.
Ela explica que, nesse período, tem aumentado ainda o luto múltiplo, quando morre mais de uma pessoa em uma mesma família. “Isso potencializa muito essa dor. É um luto muito solitário, por isso a gente achou muito importante que essas pessoas possam sentir que, por mais que a dor seja imensa, não estão sozinhas”.
No processo de luto, Gorete diz que ainda está na fase da “raiva”. Ela conta que Antônio foi internado no Hospital de Campanha da Polícia Militar, em 17 de fevereiro, para tratar da covid-19; tinha 50% dos pulmões comprometidos pela infecção na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Passavam o boletim todo fim de tarde. Eu ficava em oração o tempo inteiro, preocupada”.
Com a melhora no quadro, em 22 de março, ele foi transferido para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT). “A médica disse que ele só ficaria dois dias lá, fiquei feliz demais”, recorda Gorete. “Fui à papelaria, comprei cartolina e balão para fazer cartazes para recebê-lo quando ele saísse do hospital”. À esposa, Antônio disse que estava indo para casa, que ela preparasse o carro para buscá-lo.
Contudo, dois dias depois da internação, o quadro de Antônio piorou. “Ele me ligou e disse que iam intubá-lo ‘Não se preocupe’, foi a última coisa que ouvi dele”. Com o agravamento da condição pulmonar, Antônio morreu em 25 de março. “Eu não consigo me conformar. Ele saiu bem, andando da UTI e, de repente, poucos dias depois, ele morre”, lamenta a viúva. “Foi uma surpresa péssima, horrível”.
Tratamento psicológico
O projeto visa auxiliar os participantes a atravessar justamente esses sentimentos. Ao todo, são seis encontros virtuais baseados em uma terapia narrativa: “A lógica é ter um espaço de compartilhamento de dores, mas também de identificação de legados que foram deixados por essa pessoa querida e o que se pode fazer dali para frente”, pontua Larissa Polejack.
Nas rodas de conversa, é comum que os participantes ainda tragam fotos e objetos que remetem à pessoa que perderam. “Como a gente não pode fazer o ritual de despedida, o grupo também serve para elaborar esse momento”, diz a psicóloga. “A gente nota que as pessoas vão criando outras redes de apoio e solidariedade que extrapolam aquele encontro, é muito bonito”.
O grupo de psicólogos, formado por profissionais da Secretaria de Saúde e também mestrandos e doutorandos da UnB, passa por uma capacitação para abordar o luto. O tema agora faz parte, inclusive, da formação dos estudantes de graduação. “A ideia é que saiam da universidade preparados, porque vamos lidar com esse luto por muito tempo”.
Como a procura é crescente, a professora diz que novas vagas devem ser abertas. A orientação é encaminhar o nome para o e-mail do grupo (veja quadro) e informar que quer incluir o nome na lista de espera para ser chamado na próxima etapa.
Gorete guarda com carinho as lembranças de Antônio, com quem teve três filhos. “Em 2019 fizemos uma viagem de carro de dois meses pelo Maranhão e Piauí, visitou todos os parentes, encontrou um irmão que não via há 50 anos. Foi a despedida dele”, diz. “Me comoveu demais o tanto que as pessoas gostavam dele, não tinha noção, recebi muitas mensagens, fiquei admirada de como ele era querido”.
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