Crônica da Cidade

Lembranças e esquecimentos

Sempre fui um esquecido. Lembro detalhes de conversas que tive há muitos anos, mas, no curto prazo, tudo me escapa. Eu deveria apelar mais para recursos como post-its, agendas e lembretes no celular. Sempre tento. Tenho aqui sobre a mesa, ao menos, cinco caderninhos que poderiam cumprir essa função, mas estão, imaginem, esquecidos.

No trabalho, o problema é menor. Acho que o senso de responsabilidade faz com que os alertas naturais apareçam e me impeçam de cometer equívocos significativos. No dia a dia, entretanto, o dano é cruel. Nunca fui assaltado ou furtado e penso que devo isso a alguma entidade divina. Difícil contar a quantidade de vezes em que deixei o carro aberto com a carteira e o celular repousando sobre o banco.

Há muitos anos, quando eu ainda era um adolescente interessado em heavy metal e ufologia, esqueci meu aniversário. No caminho para o colégio, um amigo me deu parabéns. Não tive ímpeto nenhum de agradecer, devolvi logo um “por quê?”. Ele riu e disse que eu estava de sacanagem. Não estava. Ele me contou o motivo e eu também ri.

Acho que o problema é de família. Uma vez, meu pai me esqueceu na aula de violão que eu fazia em outra cidade (o corretor me sugeriu “esqueceu da aula”, vejam só como até ele tem dificuldade para acreditar nisso). Fiquei esperando e nada. Horas depois, aparece um tio e me conta que meu pai estava em casa. Só fui devolvido à família no dia seguinte. Era um tempo em que celular era objeto de luxo. Eu, obviamente, não tinha. Talvez meu pai também não.

Não sei precisar se antes ou depois, porém meu pai cometeu o mesmo erro outras vezes. Deixou minha avó, a sogra dele, para trás — e nem imaginem piadas de sogras, leitores, porque isto aqui não é um stand up de baixa qualidade e meu pai sempre a respeitou muito. Ele dá risadas das histórias até hoje; nós, as vítimas, nem tanto.

Há mais uma infinidade de casos sobre esquecimento que eu poderia contar, como a dificuldade dos meus colegas de fecharem o ponto dadas as inúmeras vezes em que eu esqueço o crachá em casa ou não me lembro de bater (perdão, pessoal). É claro, porém, que, agora que me sentei para escrever, 87,5% das lembranças — numa estatística precisa e baseada em metodologias sérias — me escapam da memória. Há algo muito importante que eu estou deixando de dizer para vocês. Peço desculpas.

Nos últimos meses — no último ano e mais um pouco, na verdade — há algumas coisas que não consigo, por mais que tente, esquecer. É um paradoxo para um desmemoriado ser incapaz de deixar de lembrar. São elas as minhas memórias mais latentes atualmente: as quase 500 mil mortes no Brasil; o negacionismo dos nossos governantes; os amigos que tiveram complicações por causa do vírus; as asneiras do presidente e o medo muito grande de que, a qualquer instante, mais de um nós possa partir.