Pode-se dizer que a ministra Maria Cristina Peduzzi passou pelas experiências mais desafiadoras impostas pela pandemia de covid-19. Eleita presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) para o biênio 2020-2022, não apenas lidou com as mudanças ocasionadas pelo regime de teletrabalho, como passou pela própria doença. Ficou 21 dias internada lutando contra o vírus.
“Passar pela covid foi difícil. Não tive sequelas, mas precisei de alguns tratamentos pontuais e fisioterapia após a alta hospitalar. Hoje, estou 100% recuperada, graças a Deus e aos médicos que me cuidaram. Já tomei as duas doses da vacina, nossa grande aliada e esperança para dias melhores”, conta, nesta entrevista à coluna.
Sobre a pandemia, acredita que o maior aprendizado é a importância de se considerar o outro nas ações e condutas individuais. Entre os pontos negativos, enumera a exaustão de trabalhadores e empresários, gerando desgastes físicos e emocionais na população. “O fechamento de muitos estabelecimentos que ofereciam opções de lazer e a necessidade de permanecer no mesmo ambiente para trabalho, descanso e lazer gerou desgaste”, observa.
Apesar das dificuldades, ela aponta avanços importantes no Judiciário. Além da adaptação ao trabalho remoto, incluindo os julgamentos, a Justiça do Trabalho repassou R$ 225 milhões para o combate à covid-19. “Esse valor foi destinado à compra de remédios, testes rápidos, máscaras, equipamentos hospitalares, UTIs móveis e outros equipamentos e instrumentos necessários. Também houve investimento em educação, pesquisa e infraestrutura”, explica.
Nesta entrevista, também aborda a questão da mulher no ambiente de trabalho. A Justiça do Trabalho, dentro do Judiciário, é a que apresenta maior paridade entre gêneros. Ainda assim, admite que o caminho é longo. “A mulher precisa trabalhar mais do que o homem para obter igual reconhecimento profissional e provar que não tem qualquer limitação em função do gênero. Também admito que a mulher enfrenta dificuldades não só na admissão, mas, em especial, na promoção a cargo de maior hierarquia”, diz.
Como o TST pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
A Justiça do Trabalho tem acompanhado as mudanças nas relações de trabalho e se adequado às novas realidades, modernizado sua atuação, para atender a sociedade de forma eficiente e célere, tanto na forma de prestar a jurisdição, utilizando ferramentas tecnológicas, quanto nas respostas para resolver os conflitos que surgem nas relações de trabalho. O uso da tecnologia pelo Poder Judiciário é uma realidade, e a Justiça do Trabalho já conta com sistemas que utilizam softwares de ponta para garantir julgamentos e serviços cada vez mais efetivos, a maioria desenvolvidos pela equipe do TST. Também repassou expressivos valores resultantes de condenações em ações civis públicas à prevenção e tratamento da covid-19 e, por meio do Projeto Garimpo, da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, converteu em renda à União, com o mesmo destino, valores pequenos não resgatados de contas judiciais.
Quanto foi repassado para o combate à covid-19?
Repassou-se, por exemplo, R$ 225 milhões. Os recursos vieram de condenações em ações civis públicas e execuções de Termos de Ajustamento de Condutas, firmados pelo Ministério Público do Trabalho, além de multas judiciais. Esse valor foi destinado à compra de remédios, testes rápidos, máscaras, equipamentos hospitalares, UTIs móveis e outros equipamentos e instrumentos necessários. Também houve investimento em educação, pesquisa e infraestrutura. Além disso, a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, por meio do Projeto Garimpo, incentivou as corregedorias regionais a priorizar a identificação de contas judiciais com valores considerados ínfimos (até R$ 150). Durante a pandemia, os valores remanescentes e não resgatados dessas contas são recolhidos em Darf (Documento de Arrecadação de Receitas Federais) específico e convertidos em renda à União. Desde a adoção desse projeto, em novembro de 2020, mais de R$ 12 milhões foram revertidos para o combate à covid-19. Isso demonstra o compromisso da Justiça do Trabalho em oferecer prestação jurisdicional célere e solucionar os conflitos que têm grande repercussão na vida de empresas e trabalhadores, por envolverem verbas alimentícias e questões cruciais para o exercício da livre iniciativa e a preservação do emprego.
As relações de trabalho sofreram mudanças drásticas durante a pandemia. O que melhorou e o que piorou?
As principais mudanças são a implementação do trabalho remoto para as atividades que podem ser realizadas fora do estabelecimento do empregador e o reforço de medidas de saúde e higiene no trabalho. O professor da Harvard Business School Jeffrey Polzer enfatiza, entretanto, que grande parte do esgotamento que vem ocorrendo nas pessoas se deve a esse evento que reuniu todas as atividades no âmbito doméstico: o auxílio escolar aos filhos, a realização do trabalho remoto, atividades físicas, pessoais e domésticas.
Se, por um lado, perdeu-se o contato pessoal entre colegas e chefes, que permitia maior socialização e até troca de ideias e experiências de forma coletiva, por outro, transferiram-se essas trocas para o meio digital por meio de aplicativos de mensagem instantânea, e-mails e videoconferências.
Especialistas destacam que o bom funcionário continua sendo bom funcionário em home office, mas como a Justiça pode proteger essa relação?
O teletrabalho já era uma opção e uma realidade implementada em alguns setores da economia e até no serviço público. Com as regras de isolamento social, o teletrabalho mostrou-se uma forma adequada para algumas atividades continuarem em funcionamento sem perder a produtividade, reduzindo o trânsito de pessoas para diminuir a taxa de contágio. O reconhecimento desse fato ganhou destaque no Poder Judiciário com a decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de ampliar o teletrabalho para cargos de chefia e de diretoria no âmbito da Justiça. No setor privado, o teletrabalho ganhou disciplina ampla com a Lei nº 13.467/2017 e novos contornos em razão da pandemia de covid-19 por meio da Medida Provisória nº 927/2020 e, mais recentemente, com a Medida Provisória nº 1.046/2021. A proteção que a Justiça do Trabalho oferece é dar efetividade à legislação vigente pela sua aplicação nos processos que lhe são submetidos para julgamento.
A senhora escreveu o livro O princípio da dignidade da pessoa humana.Nesses tempos de abusos e desrespeitos, como a Justiça do Trabalho pode interferir nessas situações?
O permanente desafio da Justiça do Trabalho é perseverar no desempenho das suas funções institucionais de prevenir e pacificar os conflitos sociais, tendo a lei como inspiração para uniformizar a jurisprudência e criar, como consequência, cenário onde a segurança jurídica seja a regra para empregados e empregadores. Assim, pode-se esperar uma Justiça do Trabalho mais tecnológica e atualizada com os objetivos e metas da Justiça 4.0, eficiente e produtiva, garantindo a solução das lides trabalhistas tanto por meio de acordos, quanto por meio do julgamento de processos, e ainda mais comprometida com a realização de suas competências constitucionais, de forma a garantir a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento social e econômico do país.
As mulheres são vítimas no mercado de trabalho: salários menores, jornadas exaustivas dentro de casa também e ainda enfrentam assédio moral e sexual. A legislação não deveria ser mais rigorosa com esses abusos?
A desigualdade de gênero no mercado de trabalho ainda é uma realidade. A legislação pune, precisamente, quem descumpre suas disposições e desrespeita direitos subjetivos. Acredito no impacto positivo de campanhas, medidas educativas para a mudança cultural e de estímulos às empresas para combater as desigualdades ainda existentes. O TST produziu uma cartilha de prevenção ao assédio moral que informa e divulga situações do cotidiano que podem resultar nessa prática.
As mulheres precisam trabalhar mais do que os homens para obter o mesmo reconhecimento. A senhora enfrentou discriminação e preconceito ao longo da sua carreira?
Acredito na veracidade dessa afirmação. A mulher precisa trabalhar mais do que o homem para obter igual reconhecimento profissional e provar que não tem qualquer limitação em função do gênero. Também admito que a mulher enfrenta dificuldades não só na admissão, mas, em especial, na promoção a cargo de maior hierarquia. Isso demonstra dois fenômenos descritos pelo vocabulário feminista: o “manterrupting”, que consiste em o homem interromper a mulher no momento em que ela está em seu direito de se manifestar, e o “mansplaining”, que consiste em um homem explicar a uma mulher algo que ela já sabe, mas ele pressupõe que lhe falta o conhecimento. A mulher deve se impor na busca de superação dessa cultura que remanesce. Enfrentei situações veladas, mas não posso dizer que fui discriminada ao longo da minha caminhada, talvez porque sempre tenha priorizado a atividade profissional.
As mulheres ainda são minoria na Justiça do Trabalho?
O ramo do Poder Judiciário que melhor atende ao critério democrático de composição paritária entre homens e mulheres é a Justiça do Trabalho. Dados de 2020 indicam que 50,4% dos cargos de juiz no primeiro grau são ocupados por mulheres. A proporção entre servidores na primeira instância também é equilibrada: 49,9% dos cargos são exercidos por elas. No segundo grau (tribunais regionais do trabalho), as desembargadoras ocupam 41,3% dos cargos. No TST, somos apenas cinco ministras em uma composição de 27. As servidoras representam 50,4% do contingente. De um universo de 2.159 servidores, 1.090 são mulheres.
A crise sanitária tem cobrado respostas rápidas de instituições, mas, às vezes, equivocadas. Quais ações o TST pode fazer para fiscalizar e orientar gestores?
O TST não é um órgão fiscalizador, sua missão é julgar. Apesar disso, tem promovido campanhas educativas sobre a importância do uso de máscara e a adoção de protocolos de higiene no ambiente de trabalho e divulgado, no site e nas redes sociais, informações sobre o enfrentamento à pandemia da covid-19 no exercício das atividades de magistrados, servidores e colaboradores. O TST também lançou uma cartilha educativa sobre o teletrabalho, com informações como direitos, estatísticas, vantagens e desvantagens do home office. O conteúdo está disponível em PDF no site do tribunal.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
Um dos maiores aprendizados que a pandemia trouxe para a geração atual é a importância do compromisso com o coletivo. Mais do que uma atitude individualista, é primordial considerar as repercussões das ações de cada um para a família, o trabalho e a sociedade em que está inserido. Usar a máscara, adotar medidas de higiene, manter o distanciamento são condutas que protegem não só o indivíduo que as pratica, mas, também, beneficiam a coletividade, pois rompem com o ciclo de contaminação.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Não sou boa conselheira nessa matéria. Nunca tive hobby por falta de tempo. Sou pragmática e direciono meu tempo para o estudo e o trabalho. Desde que assumi a presidência do TST e do CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho), passo a maior parte dele em frente ao computador. O meu recreio é o pilates, que pratico três vezes na semana.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
A principal mudança foi a adoção do teletrabalho, a realização de reuniões, audiências e sessões de julgamento por videoconferência. Além dessa mudança na forma de realizar o trabalho, possibilitada pelo uso da tecnologia, também tive um aumento considerável de carga de trabalho, não só por ter assumido a presidência do TST e do CSJT, mas, também, em razão das novas demandas jurídicas e administrativas advindas do contexto da pandemia. Assim, o aumento do serviço veio acompanhado de uma imersão no mundo tecnológico.
A senhora passou 21 dias internada com covid-19. Está plenamente recuperada ou tem sequelas?
Passar pela covid foi difícil. Não tive sequelas, mas precisei de alguns tratamentos pontuais e fisioterapia após a alta hospitalar. Hoje, estou 100% recuperada, graças a Deus e aos médicos que me cuidaram. Já tomei as duas doses da vacina.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, engajou-se em alguma atividade coletiva a distância?
Eu me engajei por meio de ações institucionais, promovidas pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Que ensinamento este momento nos deixa?
As diversas crises geradas pela pandemia — desde a sanitária até a econômica, política e social — deixam vários ensinamentos. O principal deles é a importância da solidariedade, do respeito ao próximo e da generosidade.
A senhora vive em Brasília há mais de 40 anos. Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Percebo que a capacidade de adaptação das pessoas às necessidades do tempo é uma realidade. Superar dificuldades, buscar a normalidade possível, produzir, inventar, aprender, capacitar, recapacitar são atitudes recorrentes, mescladas com a saudade do convívio presencial.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
São muitas vidas perdidas e me solidarizo com todas as famílias que tiveram perdas ou que ainda estão com parentes internados na esperança da cura. Além das medidas de prevenção e higiene, a vacina é a nossa grande aliada na superação da pandemia.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Acredito na união e na ciência como projeto suprapartidário no combate à pandemia. O investimento em pesquisa científica, a capacitação de profissionais de saúde e a infraestrutura médico-hospitalar são o alicerce para a superação da pandemia da covid-19.