São Francisco sertanejo
O Dia do Meio Ambiente reacendeu-me a memória sobre o doutor Guarany Cabral de Lavor, o engenheiro agrônomo que salvou o buriti que fica em frente ao palácio de mesmo nome, atacado a machadadas por um desvairado. Na verdade, todos os dias são dias do meio ambiente. Doutor Osanan, o chefe de Guarany, estava desesperado porque aquela palmeira é tombada como patrimônio histórico.
Ele havia consultado doutores, formados em universidades estrangeiras, mas ninguém tinha coragem de enfrentar problema tão delicado: “Guarany, você tem alguma solução?”. E a resposta do morubixaba: “Chefe, a minha solução é de sertanejo: bosta de vaca e emplastro de barro”. Foi o que salvou o buriti.
O doutor Guarany cuidou com tamanho desvelo das plantas nos tempos em que trabalhou como chefe do Departamento de Podas e Erradicação da Novacap que ganhou dos colegas o apelido de Pai das Árvores. Ele era uma espécie de São Francisco bravo, só lhe faltava os passarinhos lhe pousarem nos ombros. A bondade não pode ser boazinha; precisa ser ativa, altiva e guerreira para impor-se neste mundo cão.
No sítio onde morava, próximo a Cristalina (GO), sempre havia banana e mamão. Não se destinavam a seu consumo, eram para os canarinhos, os sanhaços, as coleirinhas, os papa-capins e os pássaros pretos do comedouro instalado na varanda da casa.
Para mim, é altamente significativo o fato de ele ter nascido em Itapipoca, cidadezinha situada no interior do Ceará, antigo território dos índios Urubu Kaapor, temíveis guerreiros. Parecia ter impresso no código genético a tenacidade e a bravura dos Kaapor. Percorreu o Brasil inteiro como topógrafo e chegou a alguns lugares pela primeira vez, como se fosse um bandeirante.
Ele morreu em 2015, com 100 anos, e não aparentava ser um velhinho frágil sugerido pela idade. Antes de adoecer, sua voz atroava para defender bichos e plantas. Certa vez, os netos acuaram uma cobra no quintal do sítio e, ao perceber, o nosso morubixaba soltou um berro de comando: “Alto lá, deixa eu ver que tipo de cobra é essa”. Ao examinar o réptil, ele sentenciou: “Não vão matar cobra nenhuma, seus bestalhões! Elas são predadoras de ratos. Depois, a área vai ficar infestada de roedores”.
A fama de protetor dos bichos chegou até o Ibama, que despejou, no sítio próximo a Cristalina, levas de uma verdadeira Arca de Noé, com tucanos, papagaios, canarinhos, tiús, iguanas e até cobras da terrífica espécie cascavel. Lá, elas permaneceram sob a sua guarda até a morte, ocorrida conforme a previsão: “Vou morrer de falência múltipla dos órgãos. A parte estética não é lá essas coisas, mas a qualidade da máquina eu garanto”.
Se estivesse vivo, com certeza, não pouparia a qualificação de “bestalhões” para as autoridades que devastam nossas matas, nossos bichos e nossas nascentes. Detestava bajulação e sempre tratou comandados e chefes com a mesma franqueza bruta, em uma silenciosa lição de caráter. Nos tempos em que dirigia, parava o carro nas estradas e mobilizava todos os ocupantes para apagar incêndios no cerrado.
Tive o privilégio de conviver muito com o doutor Guarany, pois ele foi meu sogro. Era uma pessoa extraordinária, não porque fosse perfeito, mas porque tinha grandeza de alma. Para um São Francisco bravo, só lhe faltava um passarinho pousar no ombro. E, de fato, não lhe faltou. Certo dia, um sabiá voou do comedouro e aterrissou, elegantemente, em seu braço.