VIOLÊNCIA

Feminicídio: especialistas cobram monitoramento de vítimas com medidas protetivas

Nos dois casos mais recentes registrados no Distrito Federal, as duas vítimas assassinadas pelos companheiros contavam com medidas de proteção contra os agressores

Ana Isabel Mansur
postado em 09/06/2021 06:00
Lia Zanotta, professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direitos das mulheres -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Lia Zanotta, professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direitos das mulheres - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Valdemir Pereira da Silva Júnior, 30 anos, acusado de matar a facadas a namorada, Leidenaura Moreira Rosa da Silva, 37, teve a prisão em flagrante convertida em preventiva. O crime ocorreu no domingo (6/6), em Planaltina, e a decisão pela mudança do tipo de detenção ocorreu durante a audiência de custódia. O agressor é acusado de feminicídio e lesão corporal. O inquérito policial sobre o caso será encaminhado para o Tribunal do Júri de Planaltina. A vítima foi enterrada nessa terça-feira (8/6), no Cemitério de Planaltina.

Na decisão, o juiz considerou que o contexto do crime demonstra “especial periculosidade, desprezo pela vida humana e ousadia ímpar”, o que torna necessária a manutenção da prisão. “Os fatos apresentam extrema gravidade concreta, porquanto o custodiado, com intenção homicida, teria desferido diversas facadas na vítima, sua companheira”, argumentou. Valdemir é reincidente e tem passagem pela polícia por tráfico de drogas. O magistrado destacou ainda que a condenação anterior “não bastou para frear” o “ímpeto delituoso” do acusado.

O caso está na 16ª Delegacia de Polícia (Planaltina). Em depoimento, o acusado deu uma versão, mas nada ficou comprovado sobre a motivação do crime, segundo os investigadores. O delegado-chefe da unidade, Diogo Cavalcante, afirmou que a vítima havia registrado um boletim de ocorrência em julho passado contra Valdemir, por violação à Lei Maria da Penha e por ameaça. No entanto, ela não chegou a pedir medidas protetivas.

Ao Correio, um dos filhos de Leidenaura contou que ele e os irmãos precisavam intervir nas brigas do casal para proteger a mãe. Cinco das seis crianças, frutos de outro relacionamento da vítima, haviam perdido o pai em um acidente de carro há oito anos. O caçula é filho dela com Valdemir.

Seriedade

Para Lia Zanotta Machado, professora do curso de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direitos das mulheres, é essencial tratar com a devida seriedade os casos de violência de gênero. "Passam-se anos e ainda tratam como se fosse uma ocorrência eventual, sobre uma pessoa desconhecida da vítima, como acontece em um roubo ou algo do tipo. Mas é uma ameaça feita entre pessoas que se conhecem, que estão envolvidas por afeto e ódio. Portanto, a vulnerabilidade das mulheres é enorme", destaca. Ela acrescenta que boa parte das mulheres assassinadas por companheiros não chega a fazer denúncias de agressões sofridas durante o relacionamento.

A professora também defende campanhas de incentivo ao registro e à busca por ajuda: "Antes do feminicídio, há a violência crônica, com agressões e humilhações. É preciso acabar com ela. O sistema judicial precisa aprender que a violência contra a mulher não pode ser combatida com uma simples prevenção, como é feito com crimes menos complicados. Se a sociedade considera isso normal, os homens vão continuar sentindo que podem tudo com as mulheres".

Por fim, Lia Zanotta ressalta que as autoridades não podem aceitar facilmente o pedido pela revogação de ações restritivas definidas pela Justiça. "O pedido tem de ser levado a sério. É necessário envolver atendimentos de promotores, psicólogos e assistentes sociais. (Pedir para) retirar a medida protetiva significa que há medo do outro. É preciso entender o que a mulher vive. Ela tem de ser ouvida. O fato de ir à polícia indica que ela precisa de apoio. É muito mais fácil uma pessoa ir à delegacia contra alguém que roubou uma bolsa, por exemplo, porque não há relação com o ladrão", exemplifica a especialista.

Colaborou Ana Maria da Silva

  • Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
    Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) Marcelo Cardoso/Divulgação

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Problema endêmico

No feminicídio, não faz diferença a classe social das pessoas envolvidas nem a duração do relacionamento. É uma questão de educação: os homens acham que têm a propriedade de mulheres com quem se relacionam, seja de forma permanente ou menos duradoura. As leis aprovadas ainda são ineficientes para conter a onda de violência contra elas. Com contenções de atos anteriores a casos de violência física e feminicídio, pode-se evitar a morte de mulheres, mas o Brasil ainda caminha nesse sentido. É preciso difundir a cultura da denúncia. As mulheres têm medo e sofrem em relacionamentos, mas não chegam a denunciar nem recebem medida protetiva. E, muitas vezes, mesmo com medidas, são vitimadas, porque não temos um sistema eficiente de fiscalização pelo Poder Executivo. Elas são coagidas emocional e psicologicamente pelo agressor a retirar queixas e, por vezes, não se sentem seguras de prosseguir com o processo, porque são dependentes financeiramente do companheiro e não conseguem mudar de vida depois da denúncia. Por isso, o apoio institucional, de abrigamento e inserção no mercado de trabalho, é tão fundamental quanto o incentivo às denúncias. O Estado brasileiro precisa se debruçar sobre esse problema — que é endêmico, mas tem solução. Os programas não são eficientes, senão as mulheres denunciaram mais.

Renata Gil, juíza e presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

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