ENSINO SUPERIOR

Acadêmicos da UnB promovem pesquisas sobre resistência negra nas artes

Seja na luta contra o racismo ou para divulgar a manifestação da cultura afro, estudantes da Universidade de Brasília (UnB) publicam livros que propõem reflexão sobre essa parte da população brasileira e suas raízes

Cibele Moreira
postado em 05/06/2021 06:00
O espetáculo Kalunga celebra a cultura afro por meio da dança e da música -  (crédito: Marcelo Braga/Divulgação)
O espetáculo Kalunga celebra a cultura afro por meio da dança e da música - (crédito: Marcelo Braga/Divulgação)

Estudantes da Universidade de Brasília (UnB) utilizam da literatura para falar sobre a temática negra e propor reflexões sobre a realidade dessa população no Brasil e sobre as manifestações culturais de matriz africana. O doutorando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB Paíque Duque Santarém, 35 anos, lançou o livro Mobilidade antirracista, que aborda o racismo atrelado às condições sociais do direito de ir e vir. O assunto é explorado por Paíque na tese de doutorado.

O mestrando do Programa de Metafísica da UnB Maicom Souza e Silva, 33, aproveitou sua experiência com a dança afro para colocar em livro os saberes do corpo negro na dança. Intitulado Estética das práticas performativas da dança afro-brasileira cênica, a obra decifra o espetáculo Kalunga, realizado no Museu Capixaba do Negro Verônica da Pas (Mucane), no Espírito Santo. “Falar da cultura negra, além de ser um processo de resistência, é uma forma de mostrar para as pessoas o que é a dança negra cênica”, defende Maicom que, assim como Paíque, trouxe para os estudos acadêmicos a discussão trabalhada no livro.

Em cursos distintos e sem nunca terem se visto, os dois universitários buscam dar voz a assuntos pertinentes em relação à população negra. As narrativas carregam histórias sobre vivências dos autores e pretendem proporcionar ao leitor um conhecimento mais aprofundado sobre os temas abordados nas duas obras. Em Mobilidade antirracista, produzido por Paíque Santarém em conjunto com Rafaela Albergaria e Daniel Santini, o racismo estrutural presente na sociedade brasileira é destacado nas 400 páginas do livro, composto por uma coletânea de textos escritos por 41 autores.

“A mobilidade urbana foi construída com vários marcadores raciais. A forma como as cidades brasileiras foram montadas, com segregação. A população negra, em sua maioria, está nas periferias, em regiões mais afastadas do centro e com um sistema de transporte precário”, afirma o doutorando que acredita que o livro possa levantar esse debate para a criação de políticas afirmativas. “Promover o debate sobre a mobilidade e o racismo é importante. Espero que a comunidade negra prossiga nessa discussão que está conectada com outros temas também”, ressalta.

Entre os aspectos abordados no livro, está a forma como os governos investem mais no transporte individual e deixa de lado o transporte coletivo, que atende a maioria da população periférica. “O transporte individual foi uma ferramenta de diferenciação racial na jovem guarda, com a separação de quem anda de ônibus. E isso se mantém em um sistema que investe mais em construção de rodovias e de estacionamento e menos em opções de transporte coletivo”, pontua Paíque.

De acordo com ele, houve incentivos econômicos para que a população com menor poder aquisitivo tivesse o carro próprio. “O resultado disso é: a população negra como a maioria dos endividados para conseguir autonomia de mobilidade. Até utilizar a bicicleta como meio de transporte alternativo fica inviável pela longa distância das regiões periféricas do centro”, relata o doutorando.

Além de todo o sistema construído, há ainda o racismo explícito presente no cotidiano de quem tem a pele negra. “É comum o ônibus não parar em um determinado ponto, quando um homem negro dá sinal durante a noite, por exemplo. Ou de pessoas que não querem sentar ao lado de uma pessoa negra durante uma viagem em transporte coletivo, ou achar que ela roubou o celular ou algum objeto de valor. Os casos de racismo em Uber são milhares. Isso tem que ser falado e tem que acabar”, destaca Paíque Santarém.

Para ele, a pandemia expôs essa problemática. “Com a crise da covid-19, vimos a população negra não podendo parar de trabalhar para sustentar a família. Tendo que pegar ônibus todos os dias, com a renda reduzida. As empresas de transporte coletivo começaram a brigar para diminuir a quantidade de ônibus em circulação, esquecendo de quem depende do meio de transporte, que muitas vezes vai cheio, expondo os passageiros ao risco de pegar o novo coronavírus”, critica o universitário.

O livro Mobilidade antirracista traz textos de pessoas reconhecidas nacionalmente e internacionalmente, com relatos do BNegão, Elisa Lucinda, GOG, entre outros. “Temos autores participantes de vários locais, do Distrito Federal, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belo Horizonte, de Salvador, de Fortaleza, além de autores da Suécia e uma norte-americana”, enumera Paíque Santarém. A obra apresenta diferentes formatos, como poesia, crônica, entrevista, prosa, texto acadêmico e semiacadêmico, fotos e músicas comentadas.

A coordenadora do livro junto a Paíque, Rafaela Albergaria, 31, ressalta que as narrativas mostram um recorte de vários locais do país de uma realidade que se repete. A pesquisadora em mobilidade, direitos humanos e relações raciais conta que iniciou o trabalho de pesquisa sobre o tema após perder a prima atropelada por um trem, em uma região da periferia do Rio de Janeiro. De acordo com ela, a separação racial e as estruturas nos transportes coletivos que atendem as comunidades afastadas do centro e de maioria negra é evidente no Rio de Janeiro. “Há uma diferença nítida, enquanto as regiões de periferia são atravessadas por trens, muitas vezes em situação precária, no centro, temos o metrô que tem câmera, portas automatizadas e toda a segurança aos passageiros”, pondera Rafaela.

“Em 2017, perdi minha prima. Ela morava em uma região de periferia e pegava dois trens, por dia, em um ramal precário do Rio de Janeiro, que atravessa o Jacarezinho. Quando ela foi entrar no trem, o pé ficou preso e ela foi arrastada por vários metros. Após isso, o corpo ficou estirado na linha do trem por mais de 8h. Depois do ocorrido, a gente fez um ato na estação onde ela foi morta. E várias pessoas relataram situações parecidas, que, todo dia, tem gente que fica presa na porta ou que caiu no vão entre a plataforma e o trem”, lamenta a carioca que acrescenta: “a mobilidade antirracista é muito mais do que transporte público. É também sobre o direito de ir e vir da população negra. Durante a chacina que aconteceu no Jacarezinho, duas pessoas foram baleadas dentro do trem. Pessoas que poderiam estar indo trabalhar e que foram atingidas por uma bala. É preciso construir narrativas para que isso mude”, afirma Rafaela Albergaria.

Dança afro

Partindo para um outro movimento de resistência, o cultural. Maicom Souza e Silva resgata os rituais dos orixás, principalmente o de Iemanjá, para falar sobre a dança afro-brasileira cênica. O livro Estética das práticas performativas da dança afro-brasileira cênica descreve a dramaturgia do espetáculo Kalunga. Maicom utilizou os 10 anos de estudo de dança para escrever o livro a partir da própria vivência como aluno e, depois, como professor.

Vindo de uma família humilde, do interior do Espírito Santo, Maicom foi o primeiro a ter uma formação de ensino superior. “Meu pai é analfabeto, e minha mãe nem sabia o que era mestrado. Ser aluno da UnB me abriu portas e possibilitou a publicação desse livro. O nome da universidade teve um peso para a aceitação da editora”, conta o mestrando no Programa de Metafísica da UnB.

Para ele a obra literária é uma forma de não deixar a cultura do povo negro se apagar. “Faz-se necessário que pessoas negras escrevam sobre pessoas negras, precisamos questionar as leituras pejorativas que são feitas sobre as pessoas pretas. Trazer para o conhecimento popular a dança afro, que tem diversas formas de manifestação. Ocupar os espaços com informações. Hoje, se você falar a palavra dança para alguém, a primeira imagem não será uma dança afro”, analisa Maicom.

Com um resgate cultural, ele coloca nomenclaturas em iorubá — língua nativa de muitos africanos trazidos escravizados para o Brasil. “A cultura do povo negro vem sendo apagada ao longo dos anos. Por exemplo, eu não sei de onde vem meu sobrenome, a origem dos meus antepassados da mesma forma de quem tem sobrenome italiano, por exemplo, consegue. Esse livro é minha pequena contribuição sobre a manifestação cultural afro-brasileira”, conta.

Para o trabalho de mestrado na UnB, ele pretende decifrar a origem dos movimentos da dança afro repassadas por professores do Museu Capixaba do Negro Verônica da Pas, onde ele dá aula. “Sei que tem um grupo em Salvador que a dança afro é de origem do candomblé. Quero entender como a dança afro ocorre, aqui, no Espírito Santo”, expõe ele que, por conta da pandemia, está fazendo o curso a distância na cidade natal.

  • Produtor da obra Mobilidade antirracista, Paíque Santarém reuniu textos de 41 escritores. O livro analisa o racismo estrutural pelo prisma do direito de ir e vir
    Produtor da obra Mobilidade antirracista, Paíque Santarém reuniu textos de 41 escritores. O livro analisa o racismo estrutural pelo prisma do direito de ir e vir Divulgação
  • Maicom Souza e Silva se inspirou no Kalunga para escrever a Estética das práticas performativas da dança afro-brasileira cênica
    Maicom Souza e Silva se inspirou no Kalunga para escrever a Estética das práticas performativas da dança afro-brasileira cênica Marcelo Braga/Divulgação

Onde comprar

Mobilidade antirrascista

Vendido pelo site da editora Autonomia Literária
www.autonomialiteraria.com.br/loja/teoria-politica/mobilidade-antirrascista/

Valor: R$ 40 (preço promocional da editora R$ 28)

Estética das práticas performativas da dança afro-brasileira cênica

Vendido no site da Editora Appris e em outras plataformas de venda de livros
www.editoraappris.com.br/produto/5016-esttica-das-prticas-performativas-da-dana-afro-brasileira-cnica/

Valor: R$ 52 (preço promocional da editora R$ 41,60)

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação