Reitora da Universidade de Brasília, Márcia Abrahão, primeira mulher a ocupar o posto, dedica-se a uma rotina de exercícios intensa para dar conta de um corpo extremamente debilitado durante a pandemia. A ginástica é delicada. O estica-e-puxa de verbas orçamentárias escassas e reduzidas num momento delicadíssimo, em que a universidade é testada para conciliar atividades acadêmicas em modo remoto e mais de 200 projetos de pesquisas relacionadas à covid-19.
“A Universidade está com o orçamento 8,2% menor do que no ano passado. Pela primeira vez na história, não vamos receber nenhum recurso do Tesouro para investimentos”, diz, em entrevista à coluna Eixo Capital.
Prestes a completar 60 anos de história, a UnB participa de testes de eficácia da CoronaVac e segue acompanhando as pessoas vacinadas, além de realizar estudos diversos sobre a genética do vírus, medicamentos e os muitos outros temas ligados à pandemia. “A UnB está atuante como sempre e é necessária como nunca”, defende.
A reitora lamenta que o Brasil enfrente a pandemia com base em opiniões e não em fatos confirmados pela ciência, considera lamentável que “que continuemos a ver milhares de mortes diárias por uma doença para qual já existe vacina”. Afirma ainda que não se pode “romantizar a situação atual”.
Pesquisadora, mestra e doutora em geologia, ela afirma que a pandemia escancarou problemas sociais, aprofundou desigualdades e obriga o mundo a apostar na ciência, deixando o individualismo de lado e buscando soluções para a crise sanitária de modo mais coletivo.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de a Universidade se modernizar, principalmente diante da pandemia. Como a UnB tem contribuído no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O momento atual tem nos mostrado a importância da ciência e da educação para a solução de problemas sistêmicos, como é o caso da pandemia. O enfrentamento de uma crise sanitária como essa exige estratégias coletivas, e as universidades e instituições públicas de pesquisa têm muito a contribuir. A UnB, por exemplo, tem mais de duas centenas de projetos de pesquisa, extensão e inovação de combate à covid, em todas as áreas do conhecimento. Também temos professores e técnicos na linha de frente no Hospital Universitário, que integra a rede pública de saúde do DF. Participamos dos testes de eficácia da CoronaVac e seguimos acompanhando as pessoas vacinadas, além de realizar estudos diversos sobre a genética do vírus, medicamentos e os muitos outros temas ligados à pandemia. A UnB está atuante como sempre e é necessária como nunca.
E como estão ocorrendo as demais atividades da universidade?
Em relação ao ensino — apesar de a UnB ter o Centro de Educação a Distância (Cead) há 30 anos e já usarmos plataforma virtual para apoiar a graduação e a pós-graduação, inclusive com oferta de cursos de graduação a distância para todo o Brasil —, tivemos que acelerar a inclusão digital e fazer adaptações para disciplinas que eram totalmente presenciais. Treinamos mais de 2 mil docentes, implantamos novo sistema de gestão acadêmica e disponibilizamos alternativas para que continuássemos nossas atividades acadêmicas e administrativas. Foram feitas centenas de defesas de mestrado e doutorado. No último semestre, que terminou dia 21 de maio, a média de disciplinas cursadas (5,1) foi maior do que nos semestres “normais”, antes da pandemia (4,9). Obviamente, há graves prejuízos para a formação dos estudantes, principalmente para os cursos e disciplinas que possuem aulas práticas e trabalhos de campo, além de limitar os debates, essenciais para uma boa formação.
Além dos efeitos da pandemia, a UnB perdeu mais espaço no orçamento federal. De que forma a universidade se manterá em 2021, com cortes de investimentos e despesas de custeio? As negociações com a Andifes e o Congresso Nacional avançaram?
A universidade está com o orçamento para despesas discricionárias — que incluem o pagamento de contas de água, luz, os serviços de limpeza e segurança e a assistência estudantil — 8,2% menor do que no ano passado, considerando os valores previstos na Lei Orçamentária Anual. Pela primeira vez na história, não vamos receber nenhum recurso do Tesouro para investimentos. Ou seja, a compra de livros, bases de dados, a construção de prédios e a aquisição de equipamentos de laboratório ficam muito prejudicadas. Estamos trabalhando internamente, fazendo remanejamentos e postergando despesas, para que os impactos sejam os menores possíveis nas atividades acadêmicas e administrativas. Também seguimos em diálogo com o Congresso Nacional, principalmente por meio da bancada do DF no Congresso, e na articulação com o MEC, via Andifes, em busca da recomposição orçamentária. Todos têm se demonstrado muito sensíveis ao assunto, pois reconhecem a importância das universidades federais e da UnB, e espero que consigamos reverter esse quadro.
A PEC do Teto ameaça a sobrevivência das universidades? Ou não, o horizonte de futuro é tranquilizador?
A emenda do teto de gastos agravou uma situação, que tinha se iniciado havia alguns anos, de achatamento do orçamento discricionário das universidades federais. A política de contínua redução orçamentária tem trazido dificuldades e desafios nunca antes vivenciados. Entre eles, a manutenção e melhoria da qualidade acadêmica, que é o grande patrimônio de nossas instituições. Caso a lei do teto não seja revista, corremos o risco de condenar as futuras gerações e, por consequência, ameaçar a soberania nacional. Nações ricas, mesmo em situações de crise, não deixaram de investir em ciência, tecnologia e educação. Essas são as bases do desenvolvimento, em qualquer lugar do mundo.
Primeira mulher eleita para o cargo de reitora, a senhora comanda a UnB no momento histórico dos 60 anos da instituição. Se sente realizada? A “balbúrdia” deu frutos positivos?
Me sinto orgulhosa e desafiada por estar nessa posição, não apenas pela proximidade da efeméride do nosso aniversário de 60 anos, mas também por estar na liderança de uma das maiores e melhores instituições de ensino do país em um momento tão adverso. Sei também de minha responsabilidade como mulher, por inspirar muitas jovens que ingressam na academia. Me sinto realizada, sim, principalmente por comandar uma instituição forte, de vanguarda, que sempre esteve à frente de seu tempo e soube resistir às muitas adversidades políticas e econômicas ao longo da história. Nosso passado nos inspira e nos dá força para continuar fazendo o que sabemos fazer de melhor: o ensino, a pesquisa e a extensão de qualidade,com compromisso social.
Como o UnB pode reagir mais rápido às demandas da sociedade? A tecnologia é também uma ferramenta cidadã. Ela reduzirá os gargalos burocráticos?
Certamente e, desde o início de nossa gestão, temos feito investimentos consistentes em modernização e simplificação. No início de 2020, pouco antes da pandemia, iniciamos o registro dos novos estudantes totalmente de modo digital, o que foi fundamental, tendo em vista as medidas sanitárias. Fomos a primeira universidade federal a adotar o diploma digital, passamos a oferecer documentos acadêmicos pela internet e adquirimos um sistema integrado de gestão que foi essencial durante a pandemia. Imagine que, até pouco tempo atrás, os estudantes precisavam vir às secretarias de curso para conseguir documentos como um comprovante de matrícula. Criamos em 2017 um programa chamado Simplifica UnB, coordenado pelo vice-reitor, Enrique Huelva, que tem simplificado e agilizado muitos processos. É claro que ainda há gargalos, especialmente porque precisamos deixar de lado uma cultura burocrática, mas já avançamos muito e seguimos atuando para a melhoria de processos internos e a eficiência de gestão.
A crise sanitária tem cobrado respostas rápidas de instituições. Quais ações efetivas foram adotadas pela UnB na pandemia?
Como mencionei mais acima, nossos professores e pesquisadores têm atuado em inúmeros projetos de combate à covid. Internamente, também temos nos preparado para a retomada das atividades em modo presencial, com ações como o estudo e a adaptação de espaços físicos, a substituição de torneiras e bebedouros por modelos de acionamento automático (sem toque), a aquisição de totens e de álcool em gel. Conseguimos colocar uma comunidade de mais de 50 mil pessoas em modo remoto. Apoiamos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, com a compra de equipamentos. Há perdas pedagógicas, é claro, mas nossa comunidade se manteve unida, solidária e atuante.
Dá para prever uma data para retomada das atividades presenciais?
Ainda não é possível prever uma data para isso, mas estaremos preparados, com cuidado e responsabilidade, sempre avaliando o cenário epidemiológico, com base na ciência. Temos dois comitês que analisam periodicamente o cenário e a evolução da pandemia: o Comitê Gestor do Plano de Contingência em Saúde da Covid-19 da UnB (Coes) e o Comitê de Coordenação das Ações de Recuperação (CCAR). Com base nas informações prestadas por esses dois comitês, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe, um dos colegiados superiores da UnB), define se a Universidade vai avançar ou não para as próximas etapas do plano de retomada. O próximo semestre, que, academicamente, será o 1º semestre letivo de 2021, começará dia 19 de julho. O Cepe voltará a se reunir no início de julho para verificar a possibilidade de realização de algumas atividades em modo presencial.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
Não cabe romantizar essa situação. A pandemia escancarou nossos problemas sociais, aprofundou desigualdades. Negros, mulheres, indígenas, pessoas que já viviam em situação socioeconômica difícil se tornaram ainda mais vulneráveis. São os que mais se contaminam e morrem, são os primeiros a perder empregos. Penso que a pandemia nos obriga a pensar de modo menos individual e mais coletivo. Não vamos vencer o vírus sem uma estratégia global.
Como ficam as grandes questões de Brasília no pós-pandemia?
Todas as cidades e governos terão inúmeros desafios: lidar com os impactos econômicos, com a sobrecarga dos sistemas de saúde, com as perdas educacionais. Muitos prejuízos, como, por exemplo, para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, só vão aparecer com o tempo. A Universidade de Brasília tem muito a contribuir para a avaliação e o acompanhamento desses desafios. Lançamos, recentemente, a comissão UnB 60 anos, para organizar as comemorações do nosso aniversário, em 21 de abril de 2022. Parte das atividades certamente contemplará as questões do pós-pandemia.
A senhora vive em Brasília desde criança. Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Senti a cidade silenciosa, sem vida e triste. Estive em algumas situações nos campi da UnB, por exemplo, e fui tomada por uma grande melancolia. Ver salas, laboratórios e jardins – que, antes, eram tomados por estudantes, técnicos e professores – completamente vazios é algo muito duro. Por mais que as medidas de isolamento social sejam o mais adequado para o enfrentamento da situação, e sabendo o quanto somos privilegiados por poder fazer nossas atividades em modo remoto, é natural que a gente sinta os impactos disso, inclusive em nossa saúde mental.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
É lamentável que continuemos a ver milhares de mortes diárias por uma doença para a qual já existe vacina e que pode ser prevenida com práticas como o isolamento social. Precisamos apoiar os que precisam sair de casa para trabalhar, acelerar a vacinação, trabalhar em parceria e diálogo com outras nações. A pandemia é global e exige união e colaboração para ser superada. Os países que têm seguido as recomendações dos cientistas têm se saído muito melhor na pandemia do que o Brasil. Aqui, ao contrário desses locais, além da drástica redução do orçamento das universidades federais, o orçamento do CNPq e da Capes, que têm sido fundamentais para o desenvolvimento do país há mais de 70 anos, foram reduzidos a valores irrisórios. Além disso, decisões têm sido tomadas com base em opiniões, em vez de terem como fundamento a ciência e dados com credibilidade internacional.
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