Nelson Sargento

Clarice Lispector escreveu que há pequenos crimes que escapam até do juízo final. É precisamente sobre um desses delitos que eu gostaria de falar. Em 1997, o curta Nelson Sargento, de Estevão Ciaviatta, foi alvo de uma das mais absurdas avaliações que pude testemunhar, deixando de ganhar o prêmio principal da categoria no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em favor de um outro curta-metragem de qualidade infinitamente inferior.

A expressão “filosofia de botequim” tornou-se sinônimo de disparate, conversa fiada, sem pé nem cabeça. Mas, na verdade, nós temos uma belíssima tradição de sambistas filósofos de botequim, que extraem uma sabedoria diretamente da experiência, uma sabedoria colada na vida e no corpo: “Eu agora sou feliz/Eu agora tenho paz/Me abandona por favor/Que eu já tenho um novo amor/E não te quero mais”, canta Nelson Sargento.

Animados por um misterioso instinto de alegria, os artistas do povo inventaram uma arte de transformar as experiências mais dolorosas e injustas em crônica popular bem-humorada: “Morro, és o encanto da paisagem/Suntuoso personagem de rudimentar beleza/Pés descalços na ladeira/Lata d’água na cabeça/Vida rude alvissareira/Criança sem futuro e sem escola/Se não der sorte na bola/Vai sofrer a vida inteira/Morro, és lindo quando o sol desponta/E as mazelas vão por conta do desajuste social”.

Em condições tão adversas dar a volta por cima com humor é a grande lição de elegância com que a arte popular nos brindou. Nelson Sargento é uma figura extraordinária e Estevão realizou um filme à altura do seu personagem. Parceiro de Cartola, de Nelson Cavaquinho e de Carlos Cachaça, Nelson era também um pintor de cenas populares, impregnadas da mesma graça dos seus sambas.

Estevão traduziu samba em cima, realizou um filme-samba e um filme pintura em movimento, cheio de bossa, ginga, ritmo e cores, inspirado diretamente na escala cromática dos quadros de Nelson Sargento e da Estação Primeira de Mangueira.

No filme, Cacá Diegues conta que estava reformando o apartamento e Nelson Sargento se ofereceu para pintar as paredes. Mas aquela acabou se transformando na reforma mais demorada da arquitetura moderna, pois Nelson era uma fonte inesgotável de histórias deliciosas sobre a Mangueira e sempre cantava um samba para ilustrar a narrativa.

Glauber Rocha dizia que a personagem principal das telenovelas era a porta. Sempre havia uma porta abrindo ou fechando e o plano e contraplano frontal no rosto dos personagens. Em seu curta, Estevão filma o perfil, as costas e a sombra de Nelson Sargento. É um documentário poético, em que a poesia está a serviço da verdade, da revelação do personagem.

Quando saiu o resultado em 1997, escrevi protestando, mas entrou um anúncio e o texto não foi publicado. Por isso, aproveito a oportunidade para registrar a minha indignação retroativa contra o resultado da premiação e a minha homenagem ao grande sambista Nelson Sargento, que nos deixou, ontem, aos 96 anos.