Crônica da Cidade

Os Ernestos do Itamaraty

Estou de olhos e ouvidos grudados na CPI da Covid. O difícil é aguentar as mentiras. No mundo encantado do ex-chanceler Ernesto Araújo, o governo fez tudo certo na pandemia. Mobilizou-se para comprar vacinas, não se contrapôs às recomendações da ciência e não hostilizou a China, o maior parceiro comercial e o maior fornecedor de insumos para a fabricação de vacinas no Brasil.

O problema é a suposta ameaça comunista. Eu fico imaginando se Vinicius de Moraes ou João Cabral de Melo Neto estivessem vivos e fossem funcionários do Itamaraty. No mínimo, seriam ostracizados, perseguidos e chamados de “esquerdopatas”.

Esse é o mundo encantado de Ernesto Araújo. Se os fatos desmentem a fantasia, pior para os fatos. Entretanto, os fatos implodem com os devaneios extremistas e as mentiras do ex-chanceler. A política de gestão da pandemia levou até agora à morte de boa parte dos 440 mil brasileiros.

O ex-chanceler acumula 30 anos de carreira, mas agiu com a insciência e a imprevidência de um estagiário fanatizado por gurus da internet. Rejeitou a ajuda humanitária da Venezuela quando a população do Amazonas agonizava com a falta de oxigênio. Algo está muito errado no Itamaraty. Como é que uma instituição que constituiu uma imagem de competência ao longo de 76 anos se submete a uma pessoa tão inepta, incompetente e tresloucada?

A gestão de Ernesto Araújo ficará como uma mácula na história do Itamaraty. Todas as apostas dele se frustraram: o alinhamento a Trump, os ataques à China e a negativa em negociar as vacinas. Como é que uma instituição marcada pelo alinhamento com a ciência, a cultura e o conhecimento permite que alguém realize palestra na fundação Alexandre Gusmão para fazer a apologia negacionista da suposta nocividade do uso da máscara? Quem pagou por esse desserviço ao Brasil?

É significativo o fato de que, quando necessitou de um fanático extremista, o governo de negacionistas não precisou chamar alguém de fora, encontrou a figura ideal nos próprios quadros do Itamaraty. Mas, parece que Ernesto Araújo não é o único Ernesto no Itamaraty.

O embaixador do Brasil na França, Luis Fernando Serra defendeu a gestão da pandemia do governo brasileiro e afirmou que os hospitais lotados eram culpa da falta de investimento de 24 anos de governos de esquerda, que não construíram hospitais suficientes. Deveria ser também convocado para um depoimento na CPI. É preciso que o Itamaraty reconsidere os seus métodos de avaliação.

A presença dos parlamentares médicos Humberto Costa, Rogério Carvalho e Otto Alencar na CPI da Covid tem sido fundamental. O orçamento secreto só explica parcialmente a tentativa canhestra de alguns parlamentares defenderem o único governo do mundo que se recusou a comprar vacina e, com isso, provocou a morte de milhares de brasileiros.

Talvez fosse importante também a presença de um psiquiatra. No entanto, mais do que isso, é fundamental responsabilizar cada autoridade por seus atos. Depois do início da CPI, vimos negacionistas usando máscaras, o ministério da Saúde retirando recomendações sobre tratamento precoce e muitos limpando dos arquivos vídeos de apologia à cloroquina. É uma esperança de volta à normalidade pública.