O peso de uma vida
Com o anúncio de que o Brasil chegou à marca trágica dos 400 mil mortos eu fiquei pensando na insustentável leveza do ser, no peso da vida e da morte. Avaliar a carga de dor, perda, afeto e amor envolvidas na morte de 400 mil pessoas é incomensurável. Se arcar com o peso da vida de uma pessoa é dramático, o que pensar de 400 mil?
Mas só posso imaginar a perda de 400 mil pela de uma. Fiquei amigo da família do mestre de obras que construiu a minha casa. Eu o chamarei de José neste texto. Ele é muito bem-humorado e fazia muitas brincadeiras com a mulher, a quem chamarei de Joana. Eram casados há mais de 40 anos. Joana pegou a covid e tinha comorbidades.
Quando Joana adoeceu, ele ficou profundamente abalado. Não queria sequer atender o telefone. Passou o número do neto. Ligávamos sempre para saber notícias. Em uma manhã, eu toquei para o celular e perguntei para o neto como estava a avó: “Infelizmente, a minha avó veio a óbito”, ele replicou. A palavra óbito soou estranha quase como um número ante o acontecimento trágico.
José e outra filha também se contaminaram, mas escaparam com vida. Apesar disso, eles precisam fazer terapia para controlar as sequelas. José continua brincando, mas alguma coisa aconteceu em seu coração. Ninguém passa por essa experiência incólume. São histórias como essas que se escondem atrás dos números anônimos.
Eu gostaria de saber do que o presidente e sua comitiva riram, na semana passada, diante de uma placa com os dizeres: CPF cancelado. Temos de combater o coronavírus e o vírus da mentira, que leva os escravos a se enrolarem em uma bandeira e apoiarem os responsáveis por boa parte das 400 mil mortes dos brasileiros, em manifestações golpistas. O crime não pode ficar sem castigo. Não, não somos números anônimos.
Em 1967, Clarice Lispector escreveu uma crônica proclamando, a plenos pulmões, que era um número. No entanto, logo em seguida, ela própria se insurgiu contra a sentença proferida e resolveu fazer nova crônica retificando a declaração insensata.
Depois de meditar um pouco sobre o tema, chegou à conclusão de que não, definitivamente, não era um número. Na pressa para entregar o texto, ela mesma sentiu-se ultrajada pelas próprias palavras. Farejou no ar que havia desagradado e incomodado muita gente.
A nova crônica foi uma insurreição contra a frieza e a desumanização do número. Encontrei em suas palavras um oráculo para a minha aflição atual com o pesadelo de brasileiros mortos reduzidos ao anonimato dos algarismos: “Não. Você não é um número. Nem eu”, sentencia Clarice, com a velocidade de sua intuição fulminante.
E continua: “Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número — eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei dizer onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável”.