A cada hora, ao menos duas mulheres são vítimas de violência doméstica no Distrito Federal. Entre janeiro e março deste ano, 3.953 pessoas do sexo feminino foram agredidas psicologicamente, fisicamente ou sexualmente, o equivalente a 43 mulheres por dia, segundo estudo divulgado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). Em 96,4% dos casos, as agressões ocorreram dentro de casa. Especialistas acreditam que as medidas protetivas ainda são a melhor maneira de trazer segurança nessas situações, mas alertam para os problemas na condução do processo.
Ontem, o governador Ibaneis Rocha (MDB) sancionou o projeto de lei que permite que as vítimas de violência doméstica registrem ocorrência e pedidos de medida protetiva de urgência por meio da Delegacia Eletrônica. A medida vale não só para as mulheres, mas também para crianças, idosos e pessoas com deficiência que sejam alvo de agressões. O ato, publicado no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF), segue em vigor enquanto durar o estado de calamidade pública por conta da pandemia da covid-19. A matéria, de autoria do deputado Martins Machado (Republicanos), havia sido aprovada em dois turnos pela Câmara Legislativa em março e aguardava a análise do Executivo para começar a valer.
Com base no levantamento da SSP-DF, no primeiro trimestre desse ano, foram registradas 3.777 ocorrências contra violência doméstica nas delegacias do DF, sendo que em 176 delas havia mais de uma pessoa na ocorrência, como mãe e filha, por exemplo, totalizando 3.953 vítimas. Apesar dos números expressivos, o monitoramento da Secretaria de Segurança mostra uma redução nesses casos entre janeiro e março de 2020, em que houve registro de 4.158 crimes dessa natureza, uma queda de 9%. Em 90,5% das ocorrências, os autores são homens, e 35% deles têm entre 18 e 30 anos. Já em relação aos tipos de violência, a moral e psicológica aparecem no topo, com 64,3% das ocorrências, seguidas pela violência física (38,8%).
Feminicídios
O relatório aponta que, nos três primeiros meses deste ano, o DF registrou cinco feminicídios. Somente em abril, ao menos três mulheres foram assassinadas em razão do gênero. O caso mais recente aconteceu no último domingo. A dona de casa Karla Roberta Fernandes Pereira, 38 anos, foi degolada pelo marido e teve o corpo encontrado por um catador de latinhas, em um matagal de Santa Maria.
Após assassiná-la, o autor, identificado como Adenor Pacheco de Oliveira, 47, saiu para beber com os amigos e, pela tarde, compareceu à 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria). Em depoimento, o agressor contou uma versão mentirosa acerca dos fatos e não soube explicar alguns detalhes aos policiais, segundo as investigações. Por fim, Adenor confessou o feminicídio e acabou preso. Karla deixou três filhos menores de idade.
Um outro caso ocorrido no fim de semana continua em investigação. A jovem Tatiele Cruz, 25, foi executada enquanto esperava uma carona em Sobradinho 2. Mãe de quatro filhos pequenos, a vítima sofria ameaças, mas não comentava sobre o assunto com parentes, informaram familiares ao Correio. A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) está em diligências para identificar o autor.
Com base no levantamento da SSP-DF, em 60% dos casos, os feminicídios foram motivados por ciúmes ou separação, e 20% por causa de drogas. Além disso, 80% das mortes foram cometidas por ex-companheiros e ex-namorados. O estudo também apresenta o número de tentativas de feminicídio: houve aumento em 40% entre 2020 e 2021 (entre janeiro e março) nesse tipo de crime. Na maioria deles (57%), os autores utilizaram arma branca para tentar matar a vítima.
Casos
No final de semana passado, um homem rompeu a tornozeleira eletrônica e entrou na casa da ex-mulher, na Quadra 3 do Paranoá Parque, para tentar matá-la. O agressor deu uma facada na vítima e só não não a matou porque o sobrinho da mulher o impediu. O criminoso tentou fugir pelo policial, mas acabou localizado e preso pela Polícia Militar do DF. A vítima foi encaminhada ao Hospital Regional do Paranoá e não corre risco de morte.
Um outro caso de violência doméstica foi registrado na quinta-feira. Um homem de 38 anos foi preso por investigadores da 38ª Delegacia de Polícia (Vicente Pires) após usar uma foice para ameaçar a companheira. Ele também foi detido por agredir e injuriar a mulher na presença dos sete filhos do casal. Em depoimento, a vítima contou que o marido chegou em casa por volta das 22h de quarta-feira bêbado e nervoso devido a boatos da vizinhança de que ele teria tido relações sexuais com outro homem. Irritado, ele a agrediu e, em seguida, pegou uma foice para ameaçá-la. Para intimidá-la, o homem golpeou o sofá da sala com o objeto.
Os filhos do casal confirmaram o relato da mãe e mostraram para os agentes o local onde estava a foice. Como a vítima não tinha com quem deixar os filhos, que têm entre 6 meses e 13 anos, eles também foram levados para a delegacia e tiveram acesso a brinquedoteca do local. A PCDF também providenciou café da manhã para as crianças e organizou doação de roupas e brinquedos usados. Com o fim dos procedimentos, a mulher e os filhos foram levados para casa e receberam também almoço dos agentes.
Três perguntas para: Júlio Danilo Souza Ferreira, secretário de Segurança Pública do DF
Como a secretaria avalia situações em que a vítima corre risco mesmo com as medidas protetivas impostas?
Existem critérios objetivos e subjetivos que são considerados pela Justiça ao estabelecer as medidas protetivas de acordo com as características e riscos de cada caso. Mesmo com todos os cuidados, sabemos que existe um fator de imprevisibilidade na dinâmica desses crimes. A Secretaria de Segurança Pública do DF tem trabalhado de forma integrada a outros órgãos de governo e da sociedade civil para desenvolver estratégias para impedir que estes casos aconteçam.
O que pode ser feito para garantir a segurança dessas vítimas?
A SSP/DF possui o programa Mulher Mais Segura, que se une a uma série de projetos e medidas de proteção à mulher, ações das forças de segurança e de outros órgãos do governo e da Justiça. Esse enfrentamento se dá, principalmente, mediante a prevenção — por meio de campanhas educativas; de acolhimento, com suporte necessário para a vítima; e de intervenção, com uso de tecnologia e com visitas periódicas às vítimas, feitas por agentes de segurança pública. Ano passado, ampliamos os canais de denúncia on-line, aumentamos as visitas do policiamento de Prevenção Orientado à Violência Doméstica (Provid), da PM, e inauguramos uma delegacia especializada em violência contra a mulher em Ceilândia, cidade que registra mais casos de crimes relacionados à Lei Maria da Penha. Essas medidas foram essenciais para a redução de 46% nos casos de feminicídio ano passado no DF.
Há algum projeto novo que a SSP esteja trabalhando para coibir crimes contra mulheres?
Existem diversos projetos no âmbito do Mulher Mais Segura para o enfrentamento desses crimes, sendo alguns de natureza prática. Mês passado, por exemplo, lançamos o Dispositivo de Monitoramento da Pessoa Protegida (DMPP), que acompanha vítima e agressor, de forma dinâmica, impedindo que eles se encontrem em qualquer lugar, mesmo que estejam em movimento. A mulher recebe um aparelho e uma tornozeleira eletrônica é instalada no agressor. Quando ele entra no que chamamos de área de exclusão, estabelecida pela Justiça, ambos recebem alertas. Isso permite que a vítima saiba da aproximação do agressor, que também é avisado por agentes da SSP/DF para que se afaste. Caso ele não cumpra, uma equipe da Polícia Militar é acionada para o local.
Palavra de especialista: Andrea Costa, advogada especialista em direito penal e palestrante sobre combate à violência contra a mulher
“Existem vários fatores que impedem de se manter os agressores afastados. Dentre os quais podemos destacar estão a ausência de comunicação a terceiros sobre a medida deferida por desconhecimento e, às vezes, vergonha da vítima; o descaso pela gravidade do assunto, mesmo pelos órgãos de proteção, que em algumas situações tendem a minimizar a seriedade do caso; o número reduzido de policiais militares para fazer o acompanhamento da vítima e do agressor e a ausência de um tratamento psicológico e psiquiátrico de longo prazo da vítima e do agressor. Nesse cenário, se faz necessário conscientizar a vítima sobre a importância de comunicar as pessoas próximas sobre as agressões, a medida protetiva deferida e denunciar tantas vezes quantas se façam necessário, seja ligando para a PM ou indo até uma delegacia, ou a um dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o Ministério Público ou a Defensoria Pública. Em tese, os canais de denúncia são efetivos, mas perdem sua plena eficácia pela dificuldade das vítimas em serem atendidas nos números telefônicos disponibilizados, ou pela ausência de uma escuta mais acurada. Frise-se que às vezes, apesar da medida protetiva deferida, o agressor apesar de ter praticado alguns atos de violência, não o fez em grande proporção. As medidas protetivas ainda são a melhor maneira de trazer mais segurança para as vítimas de violência doméstica. Temos inúmeros casos em que a medida concedida salvou a vida dessas mulheres, provando a sua eficácia. O problema atual reside na condução após o seu deferimento. Vale lembrar que, tão importante quanto ao acompanhamento de todo o processo após a concessão da medida protetiva, devemos tratar preventivamente da questão, com a educação de nossos jovens, atentar sobre como a imagem feminina é utilizada pela mídia, enfim, conscientizar a sociedade de que essa luta é de todos por todas.”